terça-feira, 27 de abril de 2010

INFELIZ DE QUEM ACREDITA QUE SOFRIMENTO E LHANEZA DE CARÁTER SÃO CONGÊNERES GRADATIVOS!

Por uma ignorância corriqueira, li poucos romances gráficos em minha vida. Os que chegaram às minhas mãos até então, porém, merecem demoradamente o lastro de obras-primas. “Maus” (publicado originalmente em 1986) é um destes e, talvez, o melhor de todos. Terminei de lê-lo na madrugada de hoje e fiquei impressionado com a quantidade de perspectivas intelecto-emotivo-hermenêuticas que esta maravilha da literatura quadriculada nos propõe: seja pela estória em si (a sobrevivência bem-aventurada de um homem, o pai judeu do autor Art Spiegelman, às agruras dos campos de concentração nazistas), seja pelas impressionantes ilustrações metalingüísticas acerca do próprio processo de captação das entrevistas que gerariam o enredo. Porém, o que me surpreendeu mais ainda é que, por mais que o personagem principal das narrações seja o pai biológico do autor, e por mais que este seja idoso e faleça em um dado momento da narrativa, ele não é registrado como uma pessoa sem falhas de caráter. Vladek Spiegelman (1906-1982) é mostrado como um velho sovina e racista, que não se exime de voltar a um supermercado para devolver produtos já parcialmente utilizados ou irritar-se quando sua nora dá carona automobilística a um rapaz negro. Entretanto, em nenhum momento isto faz com que deixemos de nos emocionar com a grandeza dramatúrgica de seus relatos e com todos os absurdos genocidas da II Guerra Mundial.

Lembro que, numa das vezes em que eu estava revendo “A Lista de Schindler” (1993, de Steven Spielberg) em sessão coletiva, alguns espectadores reclamavam que os judeus aprisionados eram demasiados mimados, que reclamavam de qualquer besteira, de maus-tratos nem tão violentos assim. Sempre me irritei com este tipo de comentário: quem tem o direito de saber ou decidir quando um mau-trato é suficientemente violento ou não?! Levando-se em consideração que aquelas pessoas tratadas como sub-sub-sub-humanos eram ricas antes de serem feitas prisioneiras isto não agrava o peso dos golpes e privações a que eles estavam sendo subjugados? Por sorte, após uma curta reflexão, o pessoal costuma entender isso, efeito este que fica ainda mais evidente quando rebatido pelas imagens fortes do extraordinário documentário de Alain Resnais sobre o assunto, “Noite e Neblina” (1955), em que, numa cena antológica, as fezes petrificadas dos cadáveres judeus são mostradas pela câmera. Jamais me esquecerei disto enquanto viver!

Voltando ao livro “Maus”: dividido em duas partes, “Meu Pai Sangra História” e “...E Aí Meus Problemas Começaram”, e famoso por sua impressionante e funcional caracterização de personagens com diferentes nacionalidades através de avatares animais, o que mais chama a atenção no mesmo é a supremacia de sua consciência abarcadora de fatos: ao invés de julgar ou perdoar personagens (o próprio autor à frente) pelos que eles sofreram ou fizeram de bom ou de ruim, o filme mostra, valoriza a ambigüidade, deixa ao espectador a liberdade associativa. Obra-prima. Uma das descobertas mais tardias e redentoras de minha vida!

Wesley PC>

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