sábado, 9 de outubro de 2010

SAIA DE CASA E SEJA LIVRE!– VERSÕES 1998 E 2010 (E CONTANDO):

Eu não sei se acontece com todos, mas, quando eu marco antecipadamente de ir a dado lugar e fico muito tempo confinado em casa, tendo a ficar hipnotizado pelo confinamento voluntário e receoso de “encontrar o mundo lá fora”. Acontece-me isto neste exato momento, quando hesito em tomar banho e sair de casa, não obstante estar contente em ter um luau agendado desde bem antes da semana passada. O interesse é meu, portanto, creio que enfrentarei o receio e sairei de casa, sim. Preciso ver meus amigos e ser arrebatado pela brisa marítima da madrugada...

O curioso neste processo de enfrentamento de confinamento voluntário, porém, é que, dentre os 14.000 filmes que eu poderia escolher para ver hoje, deparei-me justamente com “A Maçã” (1998), de Samira Makhmalbaf, então com 18 anos, sobre o caso real de duas garotinhas gêmeas iranianas que ficaram 11 anos sem sair de casa em razão do temor de seu pai muito velho e de sua mãe cega de que elas fossem desonradas ao serem tocados por meninos. Com base no fato real em si, mostrado em imagens televisivas no início do filme, a diretora utilizou os personagens reais do evento para reconstruí-los, imbuindo-os de uma sensibilidade crítica e observacional que, caralho, só mesmo sendo iraniano para possuir: genial!

Não sei nem por onde começar a detalhar o meu estupor, mas as diversas interpretações para o sugestivo título servem como guia: depois que os vizinhos das meninas gêmeas presas em casa denunciam os pais das mesmas à Secretaria do Bem-Estar Público, uma agente social aparece na casa deles e obriga as meninas a saírem de casa. Põe-nas para fora dos portões da residência, presenteia-as com espelhos e pentes, tranca o portão da frente, aprisiona o pai e a mãe no interior da residência, com a desculpa de que assim eles sentirão o que as meninas enfrentaram ao longo de suas vidas e diz que os dois só poderão sair novamente de casa se serrarem as grades do portão. Glupt!

As meninas, entretanto, insistem em voltar para casa, mas a assistente social as empurra para fora: saiam daqui. Vão brincar na rua e façam amigos!”. As meninas tentam, mas todas as crianças (e adultos) que encontram estão com suas vidas minimamente regidas pelos ditames do capitalismo: um garotinho que vende picolés e ameaça uma das meninas porque esta não tem dinheiro para pagar o que consumiu; um garotinho que amarra uma maçã na ponta de uma vareta e fica incitando as garotinhas a pularem, em vão, para alcançá-la; um quitandeiro e um relojoeiro ambulante que as convence a convencer o pai delas a entregar dinheiro para que elas possam adquirir os produtos que eles vendem... Na maioria das situações, enxergamos estes contatos através dos espelhos redondos que as meninas ganharam. Em dado momento, uma delas divide um picolé com uma cabrita. Por detrás de todo, o discurso da assistente social (e da comunidade em geral): “estas meninas não podem ficar presas em casa o dia inteiro. Elas têm que desempenhar um papel na sociedade: elas devem se casar”. E é por isso que o pai delas tenta ensiná-las a varrer a casa, a lavar roupa, a cozinhar arroz... Mas elas não querem sair de casa. Estão acostumadas, que seja. E a assistente social reclama que elas foram domesticadas. E eu quero ver este filme de novo, acompanhado. Pungente demais!

Como é que uma rapariga de 18 anos consegue ser tão inventiva numa sociedade que tolhe tão veementemente os direitos femininos? Não consigo responder com palavras, somente divulgando o filme para quem estiver disposto a vê-lo. Ele dura apenas 86 minutos, mas deixa marcas perenes em nossos cérebros e sensibilidades. E juro que a minha sinopse não revela sequer um terço de seu poderio crítico. Vejam-no, eu suplico. E só saiam de casa se realmente tiverem vontade. É o que eu tenho agora. Ou acho...

Wesley PC>