terça-feira, 16 de novembro de 2010

A SUMA PERFEIÇÃO X A AUSÊNCIA DE HIERARQUIAS

Antes de voltar para casa e devorar com fervor sublime os 26 maravilhosos capítulos de “O Quinze” (1930), da cearense Rachel de Queiroz, uma das obras mais perfeitas da Literatura Mundial, pelo menos, daquelas até então lidas por mim, me vi diante de uma mesma questão entre dois moços fisicamente egrégios, encontrados com diferença de 10 minutos entre um e outro. Perguntei a ambos: “se todas as pessoas duma dada comunidade recebessem exatamente a mesma baixa renda monetária, e estes não se relacionassem comparativamente com mais ninguém de outras comunidades, poderíamos falar que eles eram pobres?”. As respostas de ambos, filiadas à minha própria, serviram para constatar que alguns dos preconceitos contra sertanejos de que me vi vítima após a audiência ao filme “O País de São Saruê” (1971, de Vladmir carvalho) decorriam de uma insatisfatória apreensão do documentário enquanto tal, reação negativa esta que, definitivamente, não me acometeu diante do romance supracitado, supra-perfeito, através do qual senti-me irmão de cada um de seus personagens humanos, tão equivocados em situações de desespero reativo ambiental quanto o seriam quaisquer outros seres humanos. E este desespero era ativado pela seca de 1915 no Ceará, só rivalizada à “grande seca de 1877”, citada à exaustão tanto pelos personagens do livro quanto pelos entrevistados do documentário.

Tendo consumido 1/3 do livro, empolgadamente, debaixo de uma árvore enquanto esperava alguém, lamentei por um momento que minha memória fosse incapaz de reter em detalhes toda a magnificência daquela obra, toda a supremacia daqueles diálogos, toda a riqueza de conteúdo descritivo levada a cabo por uma escritora estreante e nordestina de apenas 20 anos de idade. As palavras soam-me até inglórias para descrever o que senti. É um livro curto, mas alça vôos tão elevados no plano da psicologia histórico-dramatúrgica que a apologia amadora aqui pretendida por mim revela-se assaz inglória da magnificência da escrita penetrante de Rachel de Queiroz.

Conforme dito, são 26 capítulos. No primeiro, somos apresentados à professorinha Conceição, leitora assídua das obras que dispõe em sua biblioteca pessoal, e à sua acomodada avó Mãe Nácia, já demasiado envelhecida. Aos 22 anos de idade, Conceição já era bastante cobrada por ser ainda solteira. Nutria uma paixão mal-resolvida e mal-anunciada por seu primo Vicente, sobremaneiramente preocupado com os efeitos catastróficos da seca intensiva na fazenda que estava sob os seus cuidados. Ao seu redor, os latifundiários despediam os funcionários e largavam os animais para morrerem de fome. Chico Bento é um destes fazendeiros abandonados à própria sorte, que, sem perspectivas de vida melhor, resolve migrar para o Amazonas. A pé. Junto a si, a esposa Cordulina, a cunhada Rosinha (que desata do grupo para conseguir um emprego malogrado de balconista numa venda) e uma penca de filhos. E, aos poucos e em golpes cruéis de realidade, as trajetórias destes personagens são deslindadas frente a nós.

Apesar de o trecho do livro que mais tenha encravado em minha mente ser o conjunto de reflexões de Vicente sobre a pseudo-superioridade jurídica de seu irmão Paulo, formado em advocacia (no capítulo 8, lê-se: “ser superior é renunciar ao seu feitio e à sua vontade e, recortando todo o excesso de personalidade, amoldar-se à forma comum dos outros?”), os paroxismos dramáticos do romance são freqüentes. Numa passagem, Chico Bento depara-se com fazendeiros famélicos que se alimentam de uma vaca podre, morta de uma grave doença nos chifres, ao que ele se compadece e oferece os púnicos retalhos de carne de bode de que dispõe. Num instante seguinte, ele é tachado de ladrão após esfaquear uma cabra que surge diante de si num momento de extrema inanição familiar. Um de seus filhos morre envenenado após comer mandioca crua. E, no capítulo 7, Dona Cordulina perguntava: “Chico, que é que se come amanhã?”. A instância narrativa prossegue: “a generosidade matuta que vem na massa do sangue, e florescia no altruísmo singelo do vaqueiro, não se perturbou: ‘ – Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não havera de deixar esses desgraçados roerem osso podre’”...

E, por mais que a fome, a seca e o degredo sejam tão protagonistas quanto os personagens humanos em si, a autora não se furta de anunciar dramas associados à faina burguesa: Conceição sente raiva ao imaginar seu pretendente inassumido beijando uma negra; Conceição sente nojo de tocar em seu afilhado infantil, tingindo de poeira e negrume pela fome e pelo sol escaldante; Conceição lamenta que sua avó ou seus vizinhos jamais lerão um livro de Machado de Assis; Conceição pronuncia: “ – Ora o amor!... Essa história de amor, absoluto e incoerente, é muito difícil de achar... eu, pelo menos, nunca o vi... o que vejo, por aí, é um instinto de aproximação muito obscuro e tímido, a que a gente obedece conforme as conveniências... Aliás, não falo por mim... que eu, nem esse instinto... Tenho a certeza de que nasci para viver só...”. Seria Conceição um alter-ego da própria Rachel de Queiroz?

Não é porque a miséria cerca as pessoas que elas deixam de ser pessoas, prova-nos Rachel de Queiroz através desta obra-prima breve e superlativa. Mas é difícil manter-se humano quando vemos as vacas e cachorros com quem fomos criados sucumbir à vermelhidão óssea causada pela completa ausência de qualquer coisa para se pôr na boca enquanto paliativo alimentício. É difícil manter-se pessoa quando se constata que o Governo, que deveria ajudar seus governados, não passa de uma “cambada ladrona”. É difícil manter-se pessoa quando a mendicância sub-humilhante é o único pálido recurso que ainda permite um vislumbre infinitesimal de sobrevivência. Definitivamente, eis um livro que nos cala a boca – e, por extensão, obriga-nos a ter o que falar, a ter que falar! Está entre os meus favoritos pessoais, não consegui parar de ler até que chegasse ao fim. E não tem fim. Efetivamente, não tem fim. Está acontecendo ainda!

Wesley PC>

Um comentário:

tatiana hora disse...

aiai, tem uma coisa aí que a Conceição falou.. aiai, identificação...