sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

“- MAS O HOMEM NÃO FOI FEITO PARA A DERROTA, DISSE EM VOZ ALTA. UM HOMEM PODE SER DESTRUÍDO MAS NUNCA DERROTADO” (página 109)

Não é por acaso que o livro se chama “O Velho e o Mar”. Não “O Velho e o Menino” ou “O Velho e o Peixe-Espada” ou “O Velho e os Tubarões”, mas “O Velho e o Mar”. As interações que cerceiam o velho Santiago na obra-prima que Ernest Hemingway escreveu em 1952 têm seu foco, seu ponto nodal, no mar, não apenas o local de trabalho do protagonista, mas a zona onde ele esteve a maior parte de sua vida. E, por ser um daqueles preciosos exemplos em que faina potencialmente remunerada e a compleição das mais profundas emoções se confundem, a leitura das páginas finais deste livro foram acompanhadas por algo que experimentei no trabalho hoje. Segue descrição pormenorizada do evento, mas incapaz de descrever com fidelidade o que senti:

O telefone toca, como de praxe. Eu atendo. “Posso falar com aquele menino agitado?”, pergunta uma voz feminina do outro lado da linha. “Sou eu”, respondo. A voz começa a chorar. Por incrível que pareça, isto é comum em ligações burocráticos, de maneira que me limitei a inquirir a pessoa, que repetia que precisava de ajuda:

“– Eu preciso de ajuda! Chuif!
- Pois não?
- Eu preciso de ajuda!
- Pode falar.
- Tu lembras de mim? Eu sou Roseane, aquela que veio de Transferência Externa, da Pedagogia?
- Pois não?
- Eu estava grávida de nove meses (choro), acabo de perder o meu filho. Meu marido pode ir aí para analisar o meu processo de equivalência?
- Pode
- Obrigado, menino.
- Precisando, é só ligar”.


Este foi mais ou menos o diálogo que se deu. Numa transcrição literal do mesmo, as funções fáticas e as interrupções lacrimais seriam mais freqüentes: a mulher estava emocionadíssima do outro lado da linha, enquanto eu me limitava a demonstrar prestatividade funcional, que era o mínimo que eu podia fazer. Mas, por dentro, algo me corroia: estaria eu ficando indiferente às dores alheias? O que me consolou no evento em pauta é que a dor dela era irrelevante no auxílio que eu lhe podia prestar, mas, tendo ela confidenciado o que me confidenciou, como ficar indiferente quando, meia-hora depois, ela adentra o setor em que trabalho, acompanhada do marido, ainda ostentando uma barriga de mulher grávida, intumescida porém vazia? Fiquei condoído, mas tive que me limitar ao que eu podia fazer enquanto atendente, mas juro. O que eu pude fazer por ela, eu fiz. E, ao final, ela me agradeceu sorrindo.

Lendo o livro, gemendo de tanta satisfação diante de seu maravilhoso parágrafo final, exultei por perceber o quão superior ele é à já muito bela adaptação cinematográfico-animada realizada por Aleksandr Petrov, comentada aqui, quando eu temia não me identificar com este livro, visto que sou vegetariano e reluto em admitir que coaduno com as noções de galhardia defendidas pelo velho pescador. Para minha surpresa, choque e completa satisfação, o livro é infinitamente mais lindo, uma aula de ética supra-profissional, vida em estado bruto, via embrutecida, vida, acima de tudo, vida!

No filme, um curta-metragem animado co-produzido por Rússia, Japão e Canadá, apenas alguns trechos do livro são narrados: um breve prelúdio da relação entre o protagonista e o adolescente Manolin, a longa pendenga entre o velho e o espadarte com quem se irmana e uma lembrança de juventude, em Casablanca – Marrocos, quando participou de uma competição de braço-de-ferro que durou mais de uma madrugada. No livro, o velho fala em voz alta durante quase toda a sua extensão, de tão solitário que se sentia, se percebia e efetivamente era. E eu fiquei feliz ao perceber o quanto ele era digno enquanto ser vivo, o quanto ele respeitava as leis da natureza, até mesmo – e principalmente – quando matava um semelhante. A discussão sobre pecado que o protagonista conduz no quartel final do romance é um achado. Amei este livro, enterneci-me com o telefonema que atendi na tarde de ontem e estou vivo agora, vivo e contente por dentro. Vivo!

Wesley PC>

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