quarta-feira, 2 de novembro de 2011

AO CABO DE ALGUNS MESES, OUSO DIZER QUE SIM, SELMA, TU TINHAS RAZÃO: ESTE LIVRO É ABSOLUTAMENTE GENIAL, POR MAIS ÁRDUO QUE TENHA PARECIDO NO INÍCIO...

“Sempre achei que o meu dono subestimava as minhas capacidades. Bem gostaria nesse momento de poder falar para lhe dizer que até francês aprendi nos tempos dos jogos de cartas. E que bem podiam baixar a voz ao mínimo entendível que eu ouvia sem esforço, bastando ajustar o tamanho das orelhas. Mas se tão pouco valor me atribuía, então também não merecia o meu esforço de lhe fazer compreender o contrário, morresse com a sua idéia. Uma desforra para tanto desprezo seria contar toda a sua história, um dia. Soube então que o faria, apesar de mudo e analfabeto.” (p.393)

O excerto definitivo de que me sirvo – um tanto indebitamente – como epígrafe é suficiente para antecipar o quanto “A Gloriosa Família – O Tempo dos Flamengos” (1997), do autor angolano Pepetela, é uma obra-prima literária suma, por qualquer viés que seja analisada. Narrada oniscientemente e numa espécie de discurso indireto livre, em primeira pessoa, por um escravo com as condições de subestimação acima explicitadas, este romance impressionantemente perfeito e historicamente minucioso cobre o espaço de tempo entre fevereiro de 1642 e agosto de 1648, quando a cidade de Luanda se encontrava sob o comando dos holandeses, mas já prestes a sucumbir ao domínio dos portugueses. Seja como fosse, os nativos da cidade eram escravizados por soldados e comerciantes estrangeiros, que instituíam no local aberrantes novas relações morais e sociais, as quais escandalizavam e mantinham em constante estado de perplexidade impotente o narrador-confidente do romance, que tomava como foco de sua narrativa a família do título, composta pelo holandês convertido em católico Baltazar Van Dum, sua esposa africana Inocência e seus diversos filhos, divididos entre aqueles que foram concebidos no interior da casa e os que foram gerados no quintal, em meio às escravas. E, ao longo de mais de 400 páginas Pepetela faz uso dos recursos mais geniais em forma e conteúdo para demonstrar porque se converteu, de pronto, num dos meus autores favoritos de todos os tempos. Estou impressionado, ainda, com o que acabei de ler: obra-prima, pura e simplesmente!

Dividida em doze capítulos, a estrutura narrativa deste romance mescla-se entre uma exposição acurada de todas as relações de poder existentes na região durante a época retratada, os típicos e exuberantes problemas (sexuais e/ou amorosos) de família e, surpreendentemente, os lampejos impressivos de questionamento individual do próprio escravo que narra a trama, onipresente nos eventos que descreve ou porque fora obrigado a acompanhar seu dono nas relações com outras pessoas ou porque estivera presente nos relatos oficiais.E, ainda mais interessante, o narrador antecipa-se em dizer que seu dono só lhe prestara atenção duas vezes em toda a convivência forçada e próxima que compartilhavam: no momento em que fora adquirido e numa situação tardia, em que ele chora quando percebe a destruição dos traços legítimos de cultura africana tribal na região em que nascera. Impossível não se pôr muito próximo do narrador do romance, portanto, o que só se torna ainda mais patente quando ele se demonstra apaixonado por uma das filhas bastardas do seu dono, quando ele confessa e descreve suas masturbações enquanto espiona as investidas sexuais de outrem ou quando constata injustiças crassas, como, por exemplo, quando assassinam a facadas o amante negro de uma das filhas de Baltazar, numa cerimônia mortífera descrita com muita poesia pelo escravo.

É difícil escolher aqui apenas um detalhe insigne deste livro absolutamente arrebatador, mas peço permissão para enumerar apenas alguns dos meus momentos favoritos: tem como não se arrepiar quando o escravo-narrador luta para nos fazer entender o porquê de ele não conseguir aceitar o sentido da noção de fronteira que é imputada sobre uma dada zona de Angola, quando ele acostumou-se a chamar esta terra por este nome, ao passo que os seus habitantes e dominadores a manipulam nomenclaturalmente a depender de que nação européia esteja colonizando a região? Tem como não se indignar sobremaneira com a introjeção ideológica da dona de família africana que, ao imaginar com seus filhos fornicam com escravos, teme assim ver despurificado e desvalorizado o sangue holandês de seu marido? Tem como não se sentir cúmplice da bela Matilde, filha de Baltazar com poderes de telepatia e que, após ser descoberta em adultério, torna-se difamada por causa de suas práticas lascivas na sociedade? Tem como não se emocionar com as surpreendentes reviravoltas na condução vital do afetado Hermenegildo Van Dum, que, surpreendentemente, não apenas engravida uma escrava como também intimida um padre corrupto após chantageá-lo com ocorrências homossexuais hipócritas e proibidas? Tem como não tomar partido nas diversas disputas honoríficas que envolvem os diversos e números membros da gloriosa família que intitula o livro e com a qual o escravo-narrador estabelece uma estranha e compreensível relação de despertencimento íntimo? Quisera eu dispor de mais tempo e elogios para escrever mais e mais sobre esta obra de arte literária. Estou impressionado com o que li e senti e, mais ainda, agradecido por ter conhecido este autor angolano, politizado e mui digno em sua erudição histórica, moral, conteudística e supra-analítica. Definitivamente, Pepetela é um gênio e, como tal, regozijo em saber que a mesma baiana que me emprestou os dois de seus livros que eu tive acesso até então já está providenciando a obtenção de mais uma de suas obras. Que venha!

Wesley PC>

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