sábado, 18 de fevereiro de 2012

QUANDO A UNILATERALIDADE MILITANTE (NÃO) SE TORNA UM PROBLEMA...

Durante alguns meses do ano passado, eu tive o privilégio de trabalhar com uma muçulmana. Obviamente deslocada em relação à permissividade exacerbada de alguns costumes locais, ela sempre aventava com esperança a possibilidade de seu marido paquistanês viajar com ela para fora do Brasil. Numa tarde em que conversávamos sobre a filmografia do oriente Médio, ela olha para mim e pergunta: “tu já viste as montanhas do Afeganistão? Lindo aquilo ali, não é? Um dia, eu ainda viajo para lá”... Eu apenas sorri, em respeito à minha própria ignorância sobre as condições regionais de um lugar tão distante de minha realidade pretensamente laica, mas tão embebida de ideologia católica.

Os meses se passaram e, na noite, finalmente assisti ao filme mais publicamente acessível do genial diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf: “A Caminho de Kandahar” (2001). Acostumado que já sou aos experimentos que confundem realidade, ficção e representação simultânea dos dois nos filmes do cineasta, esperava, ainda assim, me surpreender com as soluções narrativas do autor cinematográfico. Dito e feito: ainda no quartel inicial do filme, já estava impressionado com o estranho ponto de partida tramático adotado pelo filme. Quando descobre que sua irmã pretende se suicidar no dia de um eclipse solar vindouro, por se sentir irrevogavelmente oprimida pelos ditames fundamentalistas do regime Talebã, uma jornalista que agora vive no Canadá resolve interceder e tentar salvá-la. A impossibilidade de conseguir um visto para entrar em seu país natal, entretanto, a conduz por um périplo tão surpreendente quanto esquemático, em que ela adentra o Afeganistão num helicóptero e termina acossada num dos vários desertos nacionais. No caminho, ela se depara com um garotinho que não hesita em tentar lhe vender os anéis que retira dos ossos de um cadáver encontrado na areia, com um médico de fala anglofílica que pratica a filantropia propedêutica numa cidadela pobre e costuma diagnosticar a fome como principal causadora dos sintomas patológicos das mulheres da região, e com um ladrão maneta que perambula com muletas supostamente deixadas por sua falecida mãe inválida e esquartejada por uma mina terrestre. Tudo muito condizente com o imaginário espantoso que advém das notícias sobre os maus tratos sofridos pela população afegã (especialmente a feminina) durante o período em que o filme foi realizado, mas, ao mesmo tempo, tudo tão espetaculoso: como é que o diretor conseguiu extrair humor e ironia estrangeirazada de situações tão delicadamente dramáticas quanto as que foram descritas acima? O filme responde de uma forma tão esteticamente interessante quanto politicamente perigosa. Ao final, não sabia se achava o filme genial ou horrendo. Insisto que é um ótimo filme, mas estarei eticamente desesperado enquanto não discuti-lo com alguém.

Durante a sessão, fiquei imaginando o que a minha provisória colega muçulmana de trabalho acharia do filme. Ela nunca esteve no Afeganistão, que nem eu, mas, ao contrário de mim, suas concepções sobre o modo como as mulheres infiéis devem ser tratadas pelos homens seguidores do Islã diferem sobremaneira das minhas. Em outras palavras: ela já antecipou em diversas conversas que acha falsamente propagandístico o discurso de diretores como este, que “deturpam” a realidade local em prol de uma aceitação comercial/sentimental estrangeira. Em quase qualquer outra situação, eu seria imediatamente restritivo em relação ao seu devaneio reclamante, mas, no caso de “A Caminho de Kandahar”, eu fiquei preocupado: nossa, como ela tem razão!

Wesley PC>

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