quinta-feira, 24 de maio de 2012

“DEUS TENHA PENA DO TEU FUTURO EMPREGADOR!”

Na noite de ontem, eu e alguns amigos conversávamos, à beira de uma escadaria, sobre as justificativas preconceituosas para a associação indébita entre homossexualismo e pedofilia. Expliquei-lhe que isso se dava por causa de uma oportunista inversão social entre causas e conseqüências da carência. A fim de me ajudar na compreensão do tema, algo que eu cognomino como Deus permitiu que eu finalmente assistisse a “Kes” (1969) um dos primevos filmes do cineasta Ken Loach, com o qual tenho diversas divergências de cunho metodológico-político. Comparando este filme antigo com as produções que este cineasta britânico realizou ao longo dos mais de quarenta anos seguintes, constata-se que suas variações de estilo não são tão divergentes quantos alguns pensam. Ele apenas burilou o seu estilo (em minha opinião, para um viés menos incisivo que o anterior), caracterizando-se definitivamente como um dos maiores especialistas cinematográficos contemporâneos na crítica empregatícia.

O filme que vi hoje demonstra bem isso. Sempre cri que, conforme sintetiza o resumo publicitário de sua trama, esta seria a estória de um garoto incompreendido pelos colegas e pela família que desenvolve uma relação muito próxima de companheirismo com um falcão que treina desde pequeno, mas o filme não se prende a este ‘leitmotiv’ dramático: seu roteiro é composto por uma sucessão de pequenos acontecimentos, quase triviais em sua legitimação da violência contra as crianças pré-proletárias, que não possuem uma progressão narrativa no sentido lato. Se há uma teleologia no filme, esta não é enredística, mas sim condizente com a própria rudeza de um sistema capitalista preocupado apenas com “a transição entre escola e emprego” por que devem obrigatoriamente passar todas as crianças. Ou seja, o destino de “ser pago por algo que não se gosta de fazer” é tão irrevogável neste filme quanto nos demais filmes do Ken Loach, dos quais eu não gosto muito, insisto em dizer, mas que me surpreendem por suas exceções e por sua inegável coerência estilístico-formal. O surpreendente “Meu Nome é Joe” (1998), já comentado neste ‘blog’, é um ótimo parâmetro comparativo.

Vinte e nove anos e dois retratos etários distintos separam “Kes” e “Meu Nome é Joe”, mas os elementos comunais entre ambos não tornam inviável a especulação de que o segundo personagem representa uma continuidade de caráter em relação ao protagonista do primeiro filme: caso o pequeno Casper tenha sobrevivido às agruras de sua adolescência, talvez ele tenha se tornado tão “fracassado” quanto o esperançoso Joe. Entre um e outro filme, a utilização do futebol enquanto ferramenta de sociabilidade (mal-sucedida porque impositiva, no primeiro caso; potencialmente bem-sucedida porque voluntária, no segundo) chamou a minha atenção: no segundo filme, a antevisão das práticas desportivas do protagonista Joe fazia parte de sua descrição personalística, mas, em “Kes”, surpreendeu-me deveras uma longa seqüência em que o técnico da escola em que o garotinho Casper estudava obriga-o a vestir um calção ridiculamente maior do que ele e escala-o como goleiro, enquanto simulam uma partida entre o Manchester United e o Spurs. O interessante é que, enquanto Casper fica se dependurando na trave como se fosse um macaco, um letreiro aparece na tela, indicando o placar da fictícia partida. Em meio à crueza do realismo do filme, este elemento exógeno instaura a necessidade de analisar com cautela os progressos fílmicos de Ken Loach: ao contrário do que eu pensava, ele não é um mero bibelô tardio do ‘Free Cinema’. Ele tem algo a dizer. E diz. Diz quase sempre da mesma forma, mas, agora, percebo que isto não é mera reiteração, mas sim uma concatenação de fases complementares e sistematicamente programadas do desenvolvimento de indivíduos que, desde cedo, são conduzidos ao embrutecimento pelo trabalho. Por mais discreto que seja na condução emocional das seqüências fortemente dramáticas de seus filmes, priorizando a nudez da psique (mesmo quando os corpos humanos estão cobertos) aos devaneios existenciais incondizentes com a opressão irreflexiva do cotidiano laboral, Ken Loach efetivamente emociona. O velório elíptico do falcão Kes no final do filme que leva o seu nome que o diga!

 Wesley PC> 

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