sábado, 2 de junho de 2012

COMO SE RESOLVE O PROBLEMA DA COMISERAÇÃO NO CINEMA POLICIAL DE FAVELA?

A provocação formulaica contida no título interrogativo é uma maneira de sintetizar a minha extrema empolgação diante de “O Assalto ao Trem Pagador” (1962, de Roberto Farias), clássico do cinema brasileiro que somente hoje tive a oportunidade de ver. E, para além de todas as minhas expectativas positivas acerca do filme, ele ainda me surpreendeu: é brilhante e muitíssimo bem orquestrado, um verdadeiro exemplo de como um intelectual de classe média pode retratar a atividade criminosa de alguns favelados sem incorrer em preconceitos de classe. É incrível como o roteiro, inspirado em fatos reais, respeita os indivíduos e conserva intata a dignidade de seus personagens, por mais perversos que eles possam agir. Curiosamente, antes de assistir ao filme, li uma passagem de um livro de Economia Política que talvez se aplique à minha empolgação analítica:

 “Para que o capital se encarregasse da reprodução da força de trabalho e expandisse o reino da mercadoria a todas as classes sociais, duas condições eram necessárias: a) que uma parte do salário destinado à alimentação fosse utilizado na compra de bens industriais, sem reduzir o consumi (ainda baixo) de alimentos pelas famílias, e b) que o valor dos bens industriais não fosse tão alto a ponto de exceder a parte do salário a ele dedicada e, mais, este salário deveria ser capaz de adquirir um número crescente desses bens para que a produção pudesse expandir-se”. (César Bolaño – Indústria Cultural, Informação e Capitalismo – páginas 97-98).

O autor argumentava com base num texto de André Granou, chamado “Capitalismo e Modo de Vida” (1972) e expõe a satisfação das condições capitalistas acima relatadas através de dois elementos correlatos: a reorganização das relações entre agricultura e indústria a partir da elevação da produtividade agrícola; e, principalmente, o desenvolvimento do crédito ao consumo e a redução do valor unitário dos bens industriais através da produção em série. Trazendo esta análise para o que mais me surpreendeu em relação a “Assalto ao Trem pagador” quando comparado a qualquer filme relacionado à chamada “Cosmética da Fome” foi a perfeita conjunção entre os interesses tramáticos policialescos reconstitutivos e a pujança dramática que adveio enquanto conseqüência do audacioso roubo que intitula o filme. E, nesse sentido, a direção firme e o ótimo roteiro de Roberto Farias não foram os únicos responsáveis, mas também as excelentes interpretações dos atores: o impressionante desempenho de Eliézer Gomes como o simpático e pragmático Tião Medonho é espetacular, mas a eloqüência ocular de Ruth Souza, a estereotipia pequeno-burguesa de Helena Ignez, o silêncio coadjuvante de Luiza Maranhão, a falastronice incriminadora de Dirce Migliaccio, a bazófia loira de Reginaldo Faria e a severidade institucional de Jorge Dória também impressionam bastante. Mas é o desempenho cabal de Grande Otelo que mais se destaca: acostumado ou produtivamente relegado às chanchadas, este brilhante ator está em verdadeiro estado de graça testemunhal neste filme, respondendo pelas duas situações mais sucintas no que tange à composição verossímil e convincente do universo favelado. Num primeiro momento (repetido perto do final), ele cantarola a canção “Eu Quero Essa Mulher Assim mesmo”, cuja letra é incisiva e apaixonante em seu aspecto consolador e passional, e, num segundo e ainda mais genial momento, ele olha para o lado, com uma garrafa de cachaça nas mãos, como se espera de seu personagem (intitulado justamente Cachaça) e exclama: “quando uma criança morre na favela, o povo deveria cantar: é menos um para viver na miséria!”. E eu soube que estava diante de uma das melhores obras de arte já realizadas em meu País. A magnífica, dolorosa e socialmente avassaladora imagem que é congelada na última seqüência do filme que o diga!

Wesley PC>

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