[Jadson Teles Silva e Thiago Deus Almeida, esta postagem é uma homenagem sincera, carinhosa e devotada a vocês dois!]
Dou-me o direito de quedar absolutamente perplexo diante da genialidade subestimada de “El Justicero” (1967), clássico de Nelson Pereira dos Santos que acabo de ver na TV. Antes da sessão, a apresentadora disse que o filme era um exemplo de cinema tropicalista, mas, sinceramente, não sei como classificá-lo entre o Cinema Novo que se transmutava em Cinema Marginal a partir daquela época. E, além disso, o filme é complexo o suficiente para ser confundido com cinema pequeno-burguês. Longe disso: a exposição extrema das contradições intelectuais sessentistas atinge aqui um ápice comparado ao genial “Terra em Transe” (1967, de Glauber Rocha), lançado no mesmo ano. Como é que eu nunca tinha visto este filme até então? Digam-me!
A trama de “El Justicero” atinge o ponto destacado pelas sinopses tradicionais apenas por volta dos 50 minutos de projeção. Antes disso, somos apresentados a um personagem absolutamente genial, interpretado pelo charmoso (e desconhecido) Arduíno Colassanti, que, na primeira cena em que dá o ar da graça, está assistindo ao próprio filme de sua vida. De repente, as convenções metalingüísticas se diluem em prol de uma história continuamente recontada e autoquestionada: o protagonista é um jovem bonito, rico e inteligente que ganhou o apelido do título por “ajudar” pessoas menos amparadas que ele, como, por exemplo, um rapaz negro que fora preso por suspeitas de ser “
no mínimo, um maconheiro” (ou seja, por ser negro). Num momento posterior, este mesmo rapaz negro entrega a alguns agressores perdoados um induto escrito de seu racismo, que, segundo ele, os protegerá caso eles venham a ser assaltados na Guanabara. Tapa na cara da censura!
Quando a canção-tema do filme, centrada justamente na inocuidade ativista do personagem principal, está sendo executada pela primeira vez, um empregado nordestino zomba da letra da canção e a retira do toca-discos onde está sendo executada, em mais uma confusão proposital entre som diegético e não-diegético. Ele, então, diz que prefere ouvir um forró, “melhor de dançar”, mas El Justicero (apelidado apenas de El Jus) pede para que ele coloque um disco do Vivaldi, ao que o empregado faz na rotação errada, de propósito, dedicando-se a ler revistas de mulher nuas (proibidas no País, mas que ele consegue fingindo que é militar) ao invés de trabalhar. Uma moça bonita quer ver El Jus. Pergunta o que ele está fazendo e, por detrás de uma pilastra, despido, ele responde: “
dedicando-me ao auto-erotismo”. No segundo seguinte, pede para comê-la. E eu estava completamente entregue ao filme. Genial, genial!
Mas eu estava ainda nos primeiros quinze minutos de sessão: quanto mais o filme avançada, mais genial ele ficava! Os diálogos são primorosos e muito ácidos (seja quando o protagonista diz que está quase tão mal-assessorado quanto Jango ou quando ele diz que “coincidência foi John Kennedy andar pelo Texas em carro aberto quando foi morto!”), mas os artifícios directivos não são menos inspirados: num dado momento, a montagem de cenas de pobreza numa favela é sobposta a um discurso sobre a miséria. Um enquadramento fixo da mesma favela, através de um inteligentíssimo e inusitado ‘zoom’, deixa-nos perceber que a câmera estava na área da piscina de jovens milionários, que se divertiam alheios à pobreza que os circunda. Até que El Jus se apaixona por uma mulher que não é mais virgem e tem seus preceitos moralistas questionados por seu biógrafo, que atira em sua cara o seguinte pressuposto: “c
iúme é um sintoma de insegurança, de paranóia, de homossexualismo até!”. E, como se fossem entrevistados por um documentário, vários transeuntes perguntam-se se casariam com uma mulher que tivesse dezenas de amantes. El Jus, afinal se casará com a mulher que ama, não antes de enfrentar a sua relutância em casar-se com ele apenas porque está grávida e porque seus pais milionários e iracundos intervieram. E, quando a projeção do filme dentro do filme acaba, o diretor constata que os problemas amorosos do protagonista não são interessantes e não se coadunam com o sofrimento das crianças que passam fome no Nordeste. “
A quem interessam estes problemas?”, pergunta-se o diretor. “
Interessam a mim”, responde terminante El Jus. A mim interessaram também. Saí da sessão impressionado: estou em transe ainda, aliás!
Um detalhe adicional: no filme, a mãe do protagonista não tem voz, não aparece (até porque ele mesmo recusa o seu surgimento, retrucando diretamente para o diretor do filme, um cínico alter-ego do próprio Nelson Pereira dos Santos). Tudo o que vemos e ouvimos ali é requisitado pela subjetividade dominante e dominadora do personagem, não obstante o filme não ser subsumido à sua perspectiva pequeno-burguesa, desmenti-lo, questioná-lo, não obstante, afinal, torcer sumamente por ele. Senti-me contempladíssimo: este filme veio mais do que na hora certa!
Wesley PC>
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