quarta-feira, 7 de novembro de 2012

“AQUI VAI UM CONSELHO DO FUNDO DA ESSÊNCIA HUMANA: SEJA QUAL FOR O SEU PROBLEMA, FUGIR É PIOR!”


[Jadson Teles Silva e Thiago Deus Almeida, esta postagem é uma homenagem sincera, carinhosa e devotada a vocês dois!] 

 Dou-me o direito de quedar absolutamente perplexo diante da genialidade subestimada de “El Justicero” (1967), clássico de Nelson Pereira dos Santos que acabo de ver na TV. Antes da sessão, a apresentadora disse que o filme era um exemplo de cinema tropicalista, mas, sinceramente, não sei como classificá-lo entre o Cinema Novo que se transmutava em Cinema Marginal a partir daquela época. E, além disso, o filme é complexo o suficiente para ser confundido com cinema pequeno-burguês. Longe disso: a exposição extrema das contradições intelectuais sessentistas atinge aqui um ápice comparado ao genial “Terra em Transe” (1967, de Glauber Rocha), lançado no mesmo ano. Como é que eu nunca tinha visto este filme até então? Digam-me!

 A trama de “El Justicero” atinge o ponto destacado pelas sinopses tradicionais apenas por volta dos 50 minutos de projeção. Antes disso, somos apresentados a um personagem absolutamente genial, interpretado pelo charmoso (e desconhecido) Arduíno Colassanti, que, na primeira cena em que dá o ar da graça, está assistindo ao próprio filme de sua vida. De repente, as convenções metalingüísticas se diluem em prol de uma história continuamente recontada e autoquestionada: o protagonista é um jovem bonito, rico e inteligente que ganhou o apelido do título por “ajudar” pessoas menos amparadas que ele, como, por exemplo, um rapaz negro que fora preso por suspeitas de ser “no mínimo, um maconheiro” (ou seja, por ser negro). Num momento posterior, este mesmo rapaz negro entrega a alguns agressores perdoados um induto escrito de seu racismo, que, segundo ele, os protegerá caso eles venham a ser assaltados na Guanabara. Tapa na cara da censura!

 Quando a canção-tema do filme, centrada justamente na inocuidade ativista do personagem principal, está sendo executada pela primeira vez, um empregado nordestino zomba da letra da canção e a retira do toca-discos onde está sendo executada, em mais uma confusão proposital entre som diegético e não-diegético. Ele, então, diz que prefere ouvir um forró, “melhor de dançar”, mas El Justicero (apelidado apenas de El Jus) pede para que ele coloque um disco do Vivaldi, ao que o empregado faz na rotação errada, de propósito, dedicando-se a ler revistas de mulher nuas (proibidas no País, mas que ele consegue fingindo que é militar) ao invés de trabalhar. Uma moça bonita quer ver El Jus. Pergunta o que ele está fazendo e, por detrás de uma pilastra, despido, ele responde: “dedicando-me ao auto-erotismo”. No segundo seguinte, pede para comê-la. E eu estava completamente entregue ao filme. Genial, genial!

 Mas eu estava ainda nos primeiros quinze minutos de sessão: quanto mais o filme avançada, mais genial ele ficava! Os diálogos são primorosos e muito ácidos (seja quando o protagonista diz que está quase tão mal-assessorado quanto Jango ou quando ele diz que “coincidência foi John Kennedy andar pelo Texas em carro aberto quando foi morto!”), mas os artifícios directivos não são menos inspirados: num dado momento, a montagem de cenas de pobreza numa favela é sobposta a um discurso sobre a miséria. Um enquadramento fixo da mesma favela, através de um inteligentíssimo e inusitado ‘zoom’, deixa-nos perceber que a câmera estava na área da piscina de jovens milionários, que se divertiam alheios à pobreza que os circunda. Até que El Jus se apaixona por uma mulher que não é mais virgem e tem seus preceitos moralistas questionados por seu biógrafo, que atira em sua cara o seguinte pressuposto: “ciúme é um sintoma de insegurança, de paranóia, de homossexualismo até!”. E, como se fossem entrevistados por um documentário, vários transeuntes perguntam-se se casariam com uma mulher que tivesse dezenas de amantes. El Jus, afinal se casará com a mulher que ama, não antes de enfrentar a sua relutância em casar-se com ele apenas porque está grávida e porque seus pais milionários e iracundos intervieram. E, quando a projeção do filme dentro do filme acaba, o diretor constata que os problemas amorosos do protagonista não são interessantes e não se coadunam com o sofrimento das crianças que passam fome no Nordeste. “A quem interessam estes problemas?”, pergunta-se o diretor. “Interessam a mim”, responde terminante El Jus. A mim interessaram também. Saí da sessão impressionado: estou em transe ainda, aliás!

 Um detalhe adicional: no filme, a mãe do protagonista não tem voz, não aparece (até porque ele mesmo recusa o seu surgimento, retrucando diretamente para o diretor do filme, um cínico alter-ego do próprio Nelson Pereira dos Santos). Tudo o que vemos e ouvimos ali é requisitado pela subjetividade dominante e dominadora do personagem, não obstante o filme não ser subsumido à sua perspectiva pequeno-burguesa, desmenti-lo, questioná-lo, não obstante, afinal, torcer sumamente por ele. Senti-me contempladíssimo: este filme veio mais do que na hora certa!

 Wesley PC>

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