domingo, 11 de novembro de 2012

E, DE REPENTE, O GOLPE DE MESTRE: “ESTE É UM FILME SOBRE OS USOS”!

Vou confessar: quando me dispus a ver “Gretchen - Filme Estrada” (2010, de Eliane Brum & Paschoal Samora), em pleno horário do almoço, me contentava com o próprio absurdo de seu tema real, a campanha eleitoral da autoproclamada cantora Gretchen à prefeitura do município pernambucano de Ilha de Itamaracá, em 2008. Depois de experimentar uma profunda crise profissional – relacionada ao fato de que, supostamente, ela não suportava mais rebolar ao som de apenas duas canções gemebundas e repetidas à exaustão diuturna – a cantora declara estar disposta a renunciar ao seu nome profissional e assumir-se como Maria Odete, mulher administradora, ansiosa por retribuir o afeto recebido pela cidade que a amparou quando se sentia triste. No filme, portanto, acompanhamo-la transitando entre comícios improvisados, exposições glúteas para crianças em circos interioranos e súplicas populares de eleitores acostumados a receber dinheiro para declarar a sua fidelidade partidária. Gretchen, entretanto, não apenas não tem dinheiro para distribuir (num dos momentos, ela liga para uma companhia que interrompeu o fornecimento de água em sua casa, por falta de pagamento) como alega que não quer fazer isto, no sentido de que discorda deste tipo de postura pseudo-assistencialista. Grita aos quatro ventos que não quer nem precisa ter poder, visto que, sendo quem ela é, pode adentrar qualquer escritório ministerial e ser ouvida e atendida em seu clamor, pois é amada pelo Brasil inteiro, assim ela acredita.

 Por mais bizarra que seja a sua campanha, os diretores respeitam-na: entendem tanto o desconforto ideológico da candidata a vice-prefeita de Gretchen – que, afinal, é destituída de seu cargo por escancarar o descrédito em relação às intenções políticas da cantora – quanto os interesses oportunistas dos assessores de campanha, que a treinam para evocar chavões evangélicos durante os seus pronunciamentos públicos. E, assim, a equipe de filmagem fica ao lado da artista até o momento em que ela chora, arrependida por dedicar tanto tempo de sua vida a uma campanha que, pelo visto, apenas ela e seus aficionados não viam como fadada ao fracasso retumbante. E, de repente, o golpe de mestre: um narrador anuncia que “este é um filme sobre os usos” e declara que, partir daquele momento, pode escancarar os acordos esdrúxulos que mantiveram aquela campanha...

 Depois de fazer questão de mostrar cada uma das pessoas retratadas declarando consciência e permissão acerca do uso de suas imagens em sons (em nível hiperbólico, inclusive, como quando a cantora faz a platéia de um circo recitar a referida permissão ou quando um pastor pentecostal demonstra-se satisfeito com a exposição videográfica dos feitos de seus fiéis em pleno culto monetifágico), os diretores demonstram profunda consciência histórica e documental, expondo os mecanismos de filmagem e construção da “narrativa da realidade” de uma forma que, a fim de possuir uma coincidência cinematográfica direta, é similar ao que o outrora independente John McNaughton enseja ao final de “Garotas Selvagens” (1998), quando surpreendentemente acrescenta dados imagéticos que modificam sobremaneira o que vimos na trama de suspense e muitas reviravoltas do filme: ou seja, o miolo dos acontecimentos é trazido à tona, antes que o dado tragicômico de que a cantora conseguiu obter apenas 2% dos votos válidos do município é anunciado. Sinceramente, não sei se consegui sentir mais pena, ódio ou medo da postura pública da cantora, mas que, enquanto obra desconstrutivista, o filme é genial, ah, isso ele é! Quem diria...

 Wesley PC>

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