quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

“PLACA DO CARRO: RS 2570”!


A cada novo filme de Francisco Cavalcanti que vejo, fico impressionado pelo modo como ele conjuga elementos extremamente pornográficos a um moralismo canhestro e genericamente associado a filmes B norte-americanos sobre homens pacatos que se tornam justiceiros depois que suas esposas são assassinadas e/ou estupradas por facínoras. Diante de “Horas Fatais – Cabeças Trocadas” (1987, co-dirigido por Clery Cunha), o elã positivo que eu percebera nas obras anteriormente comentadas fora substituído por uma indefinição de perspectiva associada às dificuldades de produção cinematográfica na Boca do Lixo quando o filem foi realizado: com a invasão da pornografia estrangeira após a abertura democrática do Brasil, no final da década de 1980, o erotismo criativo de outrora passou a ser atravessado por uma angústia exibitória ostensiva que tornou negativo o amadorismo empolgado e benfazejo que marca as obras de Francisco Cavalcanti...

Para além da péssima dublagem do filme, que tornou ainda mais estereotipada a interpretada de José Mojica Marins, amigo do diretor, como o principal vilão, a seqüência que mais me perturbou psicologicamente neste filme está logo no início: ao passear de bicicleta pelos cômodos de sua residência, um garotinho (vivido pelo próprio filho do diretor, Fabrício Cavalcanti) é repreendido por sua mãe, que limpava a casa. Chateado, ele a deixa reclamando sozinha e vai para a praia, brincar com uma rapariga mais velha. Enquanto isso, sua mãe e sua cunhada eram estupradas por uma dupla de homens violentos, que adentra o local segurando armas. Como o filme era obrigado a ter cenas de sexo – neste caso, explícita – por causa das imposições de seus produtores oportunistas, vemos em ‘close-up’ a penetração anal de um dos estupros, isolada como se fosse sensual, como se estivesse ali para excitar o espectador, não obstante os gritos de dor da mulher estuprada. De repente, uma hemorragia perturbadora começa a sujar de sangue o pênis do perpetrador do crime hediondo, que só pára de foder quando percebe que a mulher está morta. Ambas as mulheres morrem, alias, de modo que, quando saem correndo da casa, os estupradores esbarram no garotinho que voltava da praia, que, intrigado, resolve decorar a placa do carro dos dois homens ignorantes. Até que ele encontra sua mãe nua e assassinada no chão. E chora altissonantemente, aguardando que seu pai volte para casa e o ampare...

Através deste momento descrito de angústia conflitiva com os clichês erotógenos da época em que foi produzido, percebemos que as ambições narrativas e moralizantes do diretor esbarram em convenções subgenéricas que lhe obrigam a fetichizar aquilo que mais lhe indigna. Conclusão: era muito difícil que o filme fosse bom (nos sentidos mais completos do termo). Depois que o protagonista (como sempre, vivido pelo próprio Francisco Cavalcanti) é torturado por um delegado corrupto, que se irritou quando ele confessou as suas agruras num programa sensacionalista de TV, a necessidade de se vingar é erigida e defendida como honrosa, mas as condições internas e dificultosas da trama não permitem que a situação seja convertida em prol das angústias familiares do personagem principal, que, após flagrar seu filho sendo espancado, consola-se em fugir, depois que um policial aposentado e traficante de armas assassina um de seus agressores imediatos. Ao contrário do que fora tentado em filmes anteriores, aqui não houve a possibilidade de um final feliz. Nem mesmo de um final, aliás: o filme termina da forma mais estruturalmente arreganhada possível, o que, infelizmente, não o salva do fracasso, mas permite que ele seja defendido analiticamente. “Horas Fatais – Cabeças Trocadas” é um sintoma gritante da situação problemática de democratização que eu anseio por desvelar em minha dissertação de Mestrado. Prestarei muita atenção às suas contradições elementares, portanto, ao passo em que insisto em me declarar fã do diretor, ainda que eu não consiga me desvencilhar da confissão de que este filme é péssimo. É péssimo, mas diz muita coisa, tanto implícita quando explicitamente!

Wesley PC> 

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