sábado, 2 de junho de 2012

PARA QUE NÃO DIGAM QUE EU NÃO FALEI DA MARCHA OU, SIM, MINHA QUERIDA VADIA, EU APRECIO GESTOS SIMBÓLICOS!

Direto ao ponto: antes de ontem, 1º de junho de 2012, eu não conseguia assumir um posicionamento preciso em relação à Marcha das Vadias de Aracaju. Conversara com uma amiga que estava na organização do evento e o máximo que me chamava a atenção eram as contradições discursivas e os cortes de classe que poderiam ser detectados na tal marcha. O propósito reivindicativo na mesma não me parecia tão claro, amparado em objetos precisos. Temia que o evento redundasse em propagandas partidárias, mais do mesmo pré-eleitoral. Fui ao evento mais para rever amigos queridos do que necessariamente para aderir ao protesto...

Para minha surpresa, entretanto, a marcha foi conduzida com muita seriedade e sensatez panfletária: para além de uma ou outra contradição inevitável (vide o momento em que uma protestante elogia o fato de a presidenta do Brasil ser uma mulher para, logo em seguida, suas colegas pegarem o microfone e gritarem “Dilma não nos representa! Dilma não nos representa!”), a passeata foi muitíssimo bem-sucedida em suas exposições da causa feminina. Mais do que isso, da causa humana!

Como eu estava à margem da passeata, pude observar os comentários dos transeuntes no Centro da Cidade: duas mulheres de meia-idade tentavam entender qual era o objetivo da parada, mas não se mostraram opositoras à mesma; dois guardas de banco comentavam entre si que a manifestação era bonita; comerciantes sorriam... Foi bonito! Apesar de não me sentir contemplado por alguns posicionamentos efusivos (num dado momento, alguém conclama os manifestantes: “quem não pular é machista!”), fiquei impressionado com a coerência e direcionamento positivo dos cartazes empunhados: num deles, lia-se “mulher bonita é aquela que luta”; noutro, um amigo descamisado se perguntava até que ponto é óbvio que um homem sem camisa deseja ser estuprado. Assunções pintadas ao bissexualismo e contra o que foi tachado de “heterossexualidade obrigatória" por uma das conclamantes abundavam, bem como mulheres com decotes duplamente ousados e homens pintados com batons ou vestidos com saias ou demais peças da indumentária tradicionalmente associada às raparigas. Quem visse o que eu vi ficaria satisfeito. E, quando alguém pede aos caminhantes que pintassem as suas mãos com tinta guache vermelha como gesto simbólico em homenagem ao sangue derramado pelas mulheres ao redor do mundo, eu exultei: que bonito!

Não seria nenhuma surpresa que eu reclamasse aqui de alguns disparates exibicionistas ou tendentes à associação político-partidária, mas estes foram breves, suprimidos pela consistência defensiva de causa da Marcha como um todo. Na fala de uma das autodeclaradas vadias, por exemplo, uma garota aproveitou a deixa para clamar pela reforma Agrária. Uma miga minha aproveitou o gancho e defendeu o Poliamor. Tudo cabia naquela Marcha: eis o que ela teve de mais consistente, a organicidade. Com toda e qualquer ressalva, grito orgulhoso: GOSTEI MUITO DO QUE VI E OUVI! 

Wesley PC>

COMO SE RESOLVE O PROBLEMA DA COMISERAÇÃO NO CINEMA POLICIAL DE FAVELA?

A provocação formulaica contida no título interrogativo é uma maneira de sintetizar a minha extrema empolgação diante de “O Assalto ao Trem Pagador” (1962, de Roberto Farias), clássico do cinema brasileiro que somente hoje tive a oportunidade de ver. E, para além de todas as minhas expectativas positivas acerca do filme, ele ainda me surpreendeu: é brilhante e muitíssimo bem orquestrado, um verdadeiro exemplo de como um intelectual de classe média pode retratar a atividade criminosa de alguns favelados sem incorrer em preconceitos de classe. É incrível como o roteiro, inspirado em fatos reais, respeita os indivíduos e conserva intata a dignidade de seus personagens, por mais perversos que eles possam agir. Curiosamente, antes de assistir ao filme, li uma passagem de um livro de Economia Política que talvez se aplique à minha empolgação analítica:

 “Para que o capital se encarregasse da reprodução da força de trabalho e expandisse o reino da mercadoria a todas as classes sociais, duas condições eram necessárias: a) que uma parte do salário destinado à alimentação fosse utilizado na compra de bens industriais, sem reduzir o consumi (ainda baixo) de alimentos pelas famílias, e b) que o valor dos bens industriais não fosse tão alto a ponto de exceder a parte do salário a ele dedicada e, mais, este salário deveria ser capaz de adquirir um número crescente desses bens para que a produção pudesse expandir-se”. (César Bolaño – Indústria Cultural, Informação e Capitalismo – páginas 97-98).

O autor argumentava com base num texto de André Granou, chamado “Capitalismo e Modo de Vida” (1972) e expõe a satisfação das condições capitalistas acima relatadas através de dois elementos correlatos: a reorganização das relações entre agricultura e indústria a partir da elevação da produtividade agrícola; e, principalmente, o desenvolvimento do crédito ao consumo e a redução do valor unitário dos bens industriais através da produção em série. Trazendo esta análise para o que mais me surpreendeu em relação a “Assalto ao Trem pagador” quando comparado a qualquer filme relacionado à chamada “Cosmética da Fome” foi a perfeita conjunção entre os interesses tramáticos policialescos reconstitutivos e a pujança dramática que adveio enquanto conseqüência do audacioso roubo que intitula o filme. E, nesse sentido, a direção firme e o ótimo roteiro de Roberto Farias não foram os únicos responsáveis, mas também as excelentes interpretações dos atores: o impressionante desempenho de Eliézer Gomes como o simpático e pragmático Tião Medonho é espetacular, mas a eloqüência ocular de Ruth Souza, a estereotipia pequeno-burguesa de Helena Ignez, o silêncio coadjuvante de Luiza Maranhão, a falastronice incriminadora de Dirce Migliaccio, a bazófia loira de Reginaldo Faria e a severidade institucional de Jorge Dória também impressionam bastante. Mas é o desempenho cabal de Grande Otelo que mais se destaca: acostumado ou produtivamente relegado às chanchadas, este brilhante ator está em verdadeiro estado de graça testemunhal neste filme, respondendo pelas duas situações mais sucintas no que tange à composição verossímil e convincente do universo favelado. Num primeiro momento (repetido perto do final), ele cantarola a canção “Eu Quero Essa Mulher Assim mesmo”, cuja letra é incisiva e apaixonante em seu aspecto consolador e passional, e, num segundo e ainda mais genial momento, ele olha para o lado, com uma garrafa de cachaça nas mãos, como se espera de seu personagem (intitulado justamente Cachaça) e exclama: “quando uma criança morre na favela, o povo deveria cantar: é menos um para viver na miséria!”. E eu soube que estava diante de uma das melhores obras de arte já realizadas em meu País. A magnífica, dolorosa e socialmente avassaladora imagem que é congelada na última seqüência do filme que o diga!

Wesley PC>

sexta-feira, 1 de junho de 2012

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES - #11: “SLUGS” (1988, de Juan Piquer Simón)

E, para encerrar o Desafio, um filme cuja obtenção foi justificada por causa de um sentimento que me é bastante caro: a memória afetiva. “Slugs” foi um dos primeiros – se não o primeiro – filme que vi em VHS. Tinha menos de 10 anos de idade quando o sobrinho de minha madrinha católica (hoje espírita) me convidou para assistir a este exemplar de cinema ‘trash’ na casa dela. Não me lembrava de quase nada, mas sabia que o filme era ruim. Quando criança, eu já havia desgostado, mas a visão de lesmas assassinas gigantescas jamais saíra de minha mente: como é alguém pode ter pensado nisso?! (risos)

Revendo o filme hoje, fiquei agoniado com a sua má qualidade: apesar de ele ser um filme curto (apenas 92 minutos de duração), o sobejo de personagens mal-construídos e os péssimos diálogos me enervavam, bem como os equívocos científicos/biológicos atribuídos às lesmas, que mais pareciam sanguessugas maquinais. Os efeitos especiais, entretanto, não eram tão ruins. Se, ao invés de lesmas, os animais da trama não fossem identificados, talvez os resultados qualitativos fossem melhores. Do jeito como foi desenvolvida, esta co-produção estadunidense-espanhola enfada pela seriedade incredível que emana de um roteiro permeado de verborragia policialesca, sexualidade cafona e moralismo rudimentar. O desfecho, por exemplo, é imbecil. Mas, mesmo assim, foi bacana rever um clássico invertido de minha infância: é como se eu fizesse as pazes com mais um trauma e, assim, estivesse preparado para novas experiências. Em outras palavras: o Desafio Semanal dos 11 Filmes chegou ao fim de maneira exitosa. Que venham novos desafios!

Wesley PC>

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES - #10: “O CÃO BRANCO” (1982, de Samuel Fuller)

Quando eu era criança, “O Cão Branco” era comumente exibido na Sessão da Tarde da Rede Globo. À época, eu ainda não sabia da importância de Samuel Fuller para a História do Cinema, mas a sinopse deste filme sempre me chamou a atenção: “aspirante a atriz atropela um cachorro e, com o tempo, percebe que ele fora treinado para atacar apenas pessoas negras”. Inusitado viés para o racismo: mais cedo ou mais tarde, eu tinha que ver este filme!

Hoje em dia, a programação das televisões abertas raramente exibe filmes produzidos antes do ano 2000. Tinha que adquirir este filme por outros meios: na semana passada, o baixei pelo YouTube e, ao meio-dia de hoje, realizei o antigo desejo de vê-lo: e, caramba, é muito melhor do que eu imaginava. Samuel Fuller é um gênio mesmo!

Apesar de ser um filme fulleriano tardio (ele realizaria apenas mais dois depois desse), “O Cão Branco” revela um impressionante domínio da narrativa e da ‘mise en scéne’. O pastor alemão que nomeia o filme é um excelente personagem, muito delicado em seu misto de animal protetor e fera assassina. As seqüências de assassinato são atordoantes, bem como a impressionante condução suspensiva do ótimo roteiro. E, quando eu cria que o filme apresentava um ponto de vista otimista acerca da cura do ódio programado, um desfecho surpreendente e acachapante me deixou sem palavras por alguns instantes: glupt! Como reagir àquilo? O que eu poderia fazer se estivesse no lugar da protagonista? Como entender que apenas o sacrifício parecia socialmente viável numa situação como aquela? Um ótimo filme, muitíssimo melhor do que eu próprio esperava. Se eu o visse quando criança, talvez não tivesse tantos cachorros quanto tenho hoje. Ou, então, teria estudado para ser veterinário (risos). Samuel Fuller é mesmo um gênio! 

Wesley PC>

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES - #09: “GREY GARDENS” (1975, de Ellen Hovde, Muffie Meyer, Albert Maysles & David Maysles)

Até então, dentre todos as obras componentes do referido Desafio, este foi o filme mais difícil de ser visto. Não sei se a dificuldade era psicológica, situacional, identificativa ou se era a subsunção a um efeito proposital do documentário, mas sei que foi difícil chegar até o fim: “Grey Gardens” é um filme árduo, dorido, cru, pungente, muito bom, mas que eu tenho receio de rever por enquanto!

De supetão, minha primeira referência comparativa foi o posterior “Estamira” (2004, de Marcos Prado), documentário sobre uma mulher esquizofrênica que vivia num lixão e que nutria uma verdadeira ojeriza pelo conceito antropomorfizado de Deus. Assisti a este filme no cinema e, ao final da sessão, o próprio diretor participou de um debate que me incomodou deveras por causa do tom bastante demagógico acerca das condições de vida da protagonista de seu filme. Ao invés de comentar sobre suas opções estéticas ou sobre as epifanias filosóficas de caráter chulo proferidas pela personagem real, recentemente falecida, ele preferiu declarar para a platéia que, após ter concluído o seu projeto cinematográfico, ele a ajudou a se mudar para uma nova casa, num bairro muito mais higienizado. Fiquei bastante irritado à época: cinema e filantropia não são necessariamente antônimos funcionais, mas o assistencialismo capenga do diretor era patético, no pior e mais senso-comunal sentido do termo.

Pois bem, neste árido retrato cinematográfico de mãe e filha que vivem reclusas numa grande propriedade abandonada, o que mais me perturbou foi justamente o inverso: o registro é tão perturbador que eu desejei que os quatro diretores do filme sentissem pena das ex-socialites filmadas. Mas eles não sentiram. Eles limitaram-se a filmá-las, sem julgá-las e sem fazer apologias às suas bizarrices comportamentais. Senti-me violentado, de tão compungido que estava ao final da sessão.

Em “Grey Gardens”, a tia e a prima da ex-primeira-dama estadunidense Jacqueline Kennedy-Onassis, ambas chamadas Edith, são desnudadas em seu cotidiano de extrema clausura em relação ao mundo exterior aos jardins sujos de sua residência. No início do filme, recortes de jornais situam-nos elipticamente em relação ao contexto que motivou a curiosidade sobre as personagens: condenadas ao despejo, caso insistissem em não limpar a sua propriedade depauperada e entupida de entulhos e pulgas, as duas mulheres iludem-se e nutrem-se com memórias de um passado glorioso: a mãe era uma grande cantora do rádio, enquanto a filha mostra-se como uma artista solteirona frustrada. Enquanto a mais velha, com 79 anos de idade, passa a maior parte de seu tempo na cama, comendo e observando os hábitos fecais de seus diversos gatos, a mais nova desfila histérica pelos ambientes da residência, sempre com a cabeça coberta, saias curtas, alimentando guaxinins, dizendo que é infeliz, preterindo as supostas investidas românticas daquele que parece ser o jovem mordomo da residência. Muito cruel testemunhar tudo aquilo!

O que motivou a comparação com o filme do Marcos Prado é que, ao contrário do assistencialismo demonstrado no discurso do filme mais recente, os diretores de “Grey Gardens”, que parecem (ou fingem) ser amigos das duas protagonistas, exibem detalhes escandalosos e aberrantes do dia-a-dia de maus-tratos mútuos e frustrações delas duas. As roupas assaz decotadas da filha Edie, os braços nus e pelancudos da idosa Edith, a pletora de lixo depositada nos jardins da casa, a bagunça engendrada pelos animais que vivem no local e os testemunhos nostálgicos dos fracassos amorosos e sociais das mulheres são filmados de forma tão indecorosa que a impressão que eu tive foi que os diretores traíram a confiança que aquelas senhoras sofridas depositaram neles. Nos créditos finais, eles agradecem a alguém por ter permitido o uso comercial daquelas imagens, quando eu senti na pele que, se elas fossem minhas parentas, eu me sentiria bastante envergonhado de compartilhar toda aquela miséria psicológica com o público. O filme é triste, muito triste!

Por mais que a mais velha das duas mulheres pareça confiante quando proclama que “a pessoa se torna independente quando vive sozinha, um verdadeiro indivíduo”, o que se constata no filme é uma dependência atroz e inassumida em relação a pessoas insensíveis, como é demonstrado de forma muito patente na cena da festa de aniversário de Edith, de cortar o coração, de intimidar até quem não conseguiu demonstrar compaixão pelas histriônicas personagens. Numa outra cena, Edie reclama que sua mãe não a "deixa ser feliz nem por cinco minutos". E eu fiquei com medo de me imaginar numa situação parecida: o filme é terrível, violento, desolador! Saí da sessão perturbadíssimo e assustado: quase esqueci que o que me incomodava no início era o pensamento recorrente nalguém que estivera comigo até alguns minutos antes da sessão. Quase. Pois “quase” sempre foi e sempre será uma de minhas palavras favoritas!

Wesley PC>

quarta-feira, 30 de maio de 2012

DESAFIO MENSAL DOS 11 FILMES - #08: “SWEET MOVIE” (1974, de Dusan Makavejev)

Não precisava de nenhum pretexto para ver este filme. Já havia sido anteriormente apresentado a dois filmes geniais do iugoslavo Dusan Makavejev [“W.R. – Mistérios do Organismo” (1971) e “Montenegro ou Porcos e Pérolas” (1981)], mas, por mais absorto e ansioso que eu estivesse em relação a este filme, ainda assim, o estupor era pouco diante do que me aguardava nesta quase obra-prima de erotismo extremo, que põe para fora o que de mais delirante e perigoso existe em minha própria sexualidade. “O açúcar é perigoso”, diz uma militante comunista antes de assassinar o seu amante marinheiro, oriundo do encouraçado Potemkin. Nem ela terminou a frase, repetida duas vezes, e eu já estava concordando com ela: definitivamente, “o açúcar é perigoso”!

Várias tramas são paralelamente conduzidas em “Sweet Movie” (1974): como ponto de partida, um capitalista obcecado por cintos de castidade compra uma bela mulher canadense, a Miss Mundo 1984, como sua esposa, depois que ela é devidamente submetida a exames de virgindade pelo prestigiado Dr. Dedo Médio. Sobrevoando algumas cataratas, o capitalista tenta seduzir sua esposa explicando – erroneamente, claro – quem foi Karl Marx: “aquele cara que deu um tiro no meio da testa do czar da Rússia, o que fez eclodir a I Guerra Mundial”. Perfeito!

Mal estava recuperado das gargalhadas altissonantes que externei na seqüência anterior e surpreendo-me com a cena seguinte, em que o capitalista pinta o seu pênis de ouro para deflorar a esposa. Ela grita, apavorada, e, numa cena posterior, é seqüestrada por um negro muçulmano, a quem tacha de porco judeu, depois de xingá-lo de hitlerista. Hilário! Paralelamente, o personagem de Pierre Clémenti despe-se mais uma vez, diante de uma marinheira que abriga em sua embarcação uma mulher que abusa sexualmente de crianças e as mata em seguida. Em meio a esta panóplia narrativa (muito semelhante à de “Montenegro ou Porcos e Pérolas”, aliás), a Miss Mundo é “adotada” pelos habitantes de uma comuna, onde vive o actionista Otto Muehl, que vomita e urina durante os atos alimentícios. Enquanto os convidados do jantar fazem a maior baderna fisiológica à mesa, a jovem alisa o pênis de um cigano prostrado diante dela, naquela que é, sem dúvida, a minha cena favorita do filme, aquela em que projetei os mais perversos desejos eróticos. Um dia, quem sabe, eu não participe de uma orgia alimentícia daquela...

No quartel final do filme, as crianças mortas e o marinheiro assassinado são descobertos no barco comunista e a esposa do capitalista protagoniza uma campanha publicitária em que se lambuja completamente de chocolate. Recortes cinejornalísticos de cadáveres judeus sendo desenterrados e bebês germânicos sendo submetidos a massagens aeróbicas invadem a tela nalguns momentos, o que só configura a genialidade multi-referencial do diretor deste filme, formado em Psicologia, desencantado com as mazelas propagandísticas tanto da esquerda quanto da direita política. Se eu já era fã antes, agora que me vi eroticamente despido, tornei-me devoto do Dusan Makavejev!

Wesley PC>

ANTES DE DORMIR, CUMPRI A PROMESSA QUE HAVIA FEITO A MIM MESMO E DESPEJEI ÁGUA SOBRE A MERDA NA PRIVADA...

Hoje é aniversário da cineasta Agnès Varda. Ela completa 84 anos de idade. Fundamental em minha vida por causa do quanto o filme “Cléo das 5 às 7” (1962) me vincula a algumas amigas e a algumas idealizações românticas ainda irrealizadas, esta cineasta também me impressiona pelo modo benfazejo como enfrentou os diversos adultérios de meu marido Jacques Démy. Ela o amava. E, por amá-lo demais, compreendia que amor não se prende, não se aprisiona num juramento. E, se interrompo as postagens sobre o Desafio Semanal dos 11 Dias para elogiar a Agnès Varda, não é apenas para valorizar a sua data natalícia, mas porque a identificação com os temas de seus filmes se dá em ordem reversa: sou um monogâmico e, como tal, sofro ao me perceber sexual ou afetivamente interessado em rapazes comprometidos. Por mais que o modo como eu os ame seja demasiado respeitoso, que direito tenho eu de amar quem já tem quem ame? É possível se limitar ou se direcionar o amor? É-nos permitido escolher, nesta seara afetiva tão delicada? É crime ou pecado amar à distância? E, se “pensar em pecar já é pecar”, ter sonhos eróticos (não convertidos em masturbação ou qualquer outra extensão erotógena) com pessoas comprometidas é algo merecedor de condenação? Agnès Varda talvez dissesse que não. E é isso o que eu preciso ouvir agora...

 Wesley PC>

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES - #07: “CALAFRIO” (1971, de Daniel Mann)

No último final de semana, assisti a uma regravação deste filme (vide comentário aqui). Sempre quis assistir ao filme original, mas, enquanto não o encontrava, pensei que fosse me consolar com a versão mais recente do mesmo. Triste engano: o filme dirigido por Glen Morgan é péssimo, destrói lancinantemente toda a poesia delinqüente que eu atribuía ao personagem principal. Na noite de hoje, comprovei que meu idealismo acerca do protagonista era legítimo: sua construção dramática é muito, muito boa!

Apesar de eu não ter gostado do último quartel do filme, em que o ritmo cadenciado das outras três partes é substituída por ações inconseqüentes ou precipitadas (mas, ainda assim, verossímeis), a atuação de Bruce Davison é cativante. Juro que me percebi nele, adolescente, em mais de um momento. Porém, como bem disse o pesquisador Jean Tulard, os astros do filme são mesmo os ratos. E estes estão absolutamente brilhantes. O Olhar atemorizante e ameaçador do enorme Ben na cena final é fortíssimo. Definitivamente, os ratos deste filme atuam! E, mesmo sem ter gostado tanto quanto eu pensava que fosse gostar, fiquei encantado com o que vi. Se tivesse assistido a “Calafrio” aos 15 anos de idade, talvez os meus comportamentos fossem muito mais misantrópicos hoje em dia. Como diz o senso comum, que bom que tudo tem a sua hora certa de se manifestar! (risos)

Wesley PC>

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES - #06: “DON SANCHE” (1969, de Jan Svankmajer)

Um dos aspectos mais interessantes deste Desafio a que estou me submetendo nesta semana é que estou entrando em contato com obras cinematográficas desconhecidas até mesmo nos circuitos alternativos de cinema. Este média-metragem do genial animador tcheco, por exemplo, é, injustamente, um dos seus filmes menos mencionados pelos admiradores, quando, na verdade, é um dos mais geniais e inspirados. Tendo por base algumas lendas ancestrais de seu País, o filme de Jan Svankmajer conta a estória de um invejoso cortesão que, depois que é deserdado pelo pai rico, insiste em seduzir a amante de seu irmão. Ajudado por seu bobo da corte, o protagonista assassina o próprio pai, o seu sogro em potencial e o irmão apaixonado, numa cena graficamente impressionante, em que o sangue jorra de várias perfurações no rosto da marionete. A “moral da estória” é o que chama ainda mais a nossa atenção: definitivamente, o diretor-roteirista não se rendeu a uma moral unidimensional ou taxativa, mas, ao contrário, erigiu um belíssimo libelo em defesa do arrependimento legítimo. Maravilha de filme, saí da sessão encantado.Vejam-no o quanto antes, por favor a nós mesmos!

Wesley PC>

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES - #05: “I CANNIBALI” (1970, de Liliana Cavani)

Conheço pouco sobre a Liliana Cavani. Vi poucos de seus filmes e há muito tempo, de modo que o máximo que posso alegar sobre ela é que ela é polemista. Quando soube que o protagonista deste filme era o esqualidamente sensual Pierre Clémenti, me empolguei: ela vai filmar ele nu! Dito e feito. Porém, o mais interessante no filme nem é o seu erotismo, mas justamente a sua defesa existencial: em “I Cannibali”, a tragédia grega de Antígona, impedida de enterrar o seu irmão por uma determinação republicana, é transportada para um contexto futurista despótico, em que os cadáveres dos rebeldes mortos em conflito com a polícia devem quedar no meio das ruas, deteriorando-se naturalmente e servindo de exemplo para quem passa, indiferente aos motivos da rebelião. Um personagem estrangeiro, entretanto, conquista o afeto de Antígona e a ajuda a enterrar o irmão. Ambos são presos, ao som da fabulosa trilha sonora sarcástica de Ennio Morricone, de modo que as pungentes conseqüências da trama (as que explicam o título do filme, inclusive) não devem ser narradas por mim, mas sim conferidas diretamente neste filme genial e subestimado. Não li ainda o texto original de Sófocles, mas o que vi aqui é coerentemente impressionante: preciso corrigir esta lacuna literário-teatral o quanto antes! 

Wesley PC>

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES - #04: “LES IDOLES” (1968, de Marc’o)

Ver este filme me deixou com dor de cabeça. Não apenas porque dispunha de uma cópia com legendas dessincronizadas em inglês ou porque o tema do filme obrigasse os personagens a desempenhos cada vez mais gritantes, mas porque, a cada segundo de ‘chanson française’ executado, eu lembrava de um ex-amigo, prefixo forte, vergonhoso, mas que, conforme ele mesmo fez questão de me dizer, às vésperas do último ‘réveillon’, nem foi minha culpa... Mas eu lembrei muito dele enquanto via o filme!

No que eu entendi da trama – considerada por alguns detratores como “anti-godardiana”, em comparação com este filme aqui, mais ou menos sobre o mesmo tema (a oportuna celebração da rebeldia juvenil por parte da Indústria Cultural) – o ótimo personagem de Jean-Pierre Kalfon (o melhor cantor dentre os três protagonistas) era apaixonado pela personagem de Bulle Ogier (a melhor atuação dentre os três protagonistas), por sua vez, programada para se casar com o personagem de Pierre Clémenti (a melhor presença em cena dentre os três protagonistas). Os três participam de um programa de auditório em que a platéia interpela os ídolos com as suas dúvidas e, aos poucos, as insinceridades do mercado fonográfico são desnudadas, culminando na genial metonímia relacional evocada por este fotograma, quando a constituição dos uniformes publicitários dos três protagonistas revela muito sobre os seus sentimentos recônditos. Só vendo mesmo para entender. E, se Deus quiser, um dia eu hei de rever este filme ao lado de meu amigo (sem ex-) Américo!

Wesley PC>

terça-feira, 29 de maio de 2012

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES - #03: “MAGIA DO CÉU E DA TERRA” (1962, de Harry Smith)

Por mais que eu já tenha folheado o indispensável guia “1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer”, não me lembrava de ter parado na página 406 e ler sobre este filme. Deveria. Jogar-me de cabeça nesta jóia experimental, que influenciou tanto o cinema de Jan Svankmajer e Raoul Servais quanto a abertura da telenovela “Cordel Encantado”, para ficar em apenas alguns exemplos óbvios, sem uma preparação bibliográfica mais intensa (é imprescindível ler Freidrich Engels antes de ver este filme) é algo que extenua. Extenua mas dá prazer mesmo assim: é muita informação no filme, muita informação mesmo!

O verbete sobre o filme no guia editado por Steven Jay Schneider adverte que o filme “tem até algum tipo de enredo. O espectador pode agarrar-se aos elos gráficos e associativos que existem entre os objetos e formas que dançam através de cada fotograma”. E, sempre que um martelo aparecia, ouvíamos o barulho de um sino. E víamos peixes, melancias, bebês choramingando, cachorros latindo, figuras da arte vitoriana, ding-dong, triiiim... Buá! Melancia, melancia, conta-gotas. Um homem, um manequim. Ding-dong. O martelo. Segundo o que aprendi com Friedrich Engels, o uso de ferramentas foi essencial na transformação do macaco em homem. O trabalho redime e transforma? Triiiim!

Wesley PC> 

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES - #02: “IT” (1927, de Clarence G. Bladger)

Havia visto esse filme faz tempo, mas, lendo o mesmo livro do Philip Kent anteriormente mencionado, me deparei com um elogio cálido à obra, tão cálido que não resisti: tinha que ver a Clara Bow em ação novamente. Afinal de contas, ela tem muito “it”.

 No filme, “it” é um elemento sedutor infalível que propulsiona os seus portadores para o sexo oposto, sem que estes sejam agrilhoados pela vaidade. A protagonista é visivelmente permeada por “it” e, mesmo sendo uma simples atendente de loja de departamentos, consegue encantar o seu patrão, que fica completamente apaixonado, mas hesita em casar com ela quando um mal-entendido o faz pensar que a moça é mãe solteira. Ao final, tudo dará certo, mas o final feliz é bastante convincente e socialmente crível. Gostei do filme. Sorri em diversas cenas, principalmente no momento mostrado em foto, quando o melhor amigo janota do protagonista (William Austin) olha-se no espelho e, depois de ler o folhetim de Elinor Glyn que inspirou o roteiro, alega que possui o tal “it” (risos). Numa cena posterior, a própria autora aparece num restaurante e reexplica o que é o tal “it” para os personagens. Muito bom recurso semi-metalingüístico (risos).

Foi particularmente reconfortante rever este filme, apanágio do 'star system' no cinema mudo hollywoodiano, auge e, ao mesmo tempo, declínio desta era, visto que, no mesmo ano em que “It” foi produzido, o som chegou a Hollywood. Mas isso é outra história...

Wesley PC>

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES - #01: “ESCRAVO DE UMA PAIXÃO” (1915, de Frank Powell)

Esse é um daqueles filmes que eu não conhecia até o último fim de semana, mas do qual, de uma hora para outra, tornei-me informativamente íntimo. Na noite de sexta-feira, folheei descompromissadamente um daqueles livros enciclopédicos sobre cinema, editado por um tal de Philip Kent, que elogiava sobremaneira o filme. Não sosseguei enquanto não o baixei e o vi. Respeitando a cronologia dos 11 filmes escalados para o Desafio, ele foi o primeiro a ser assistido. E, infelizmente, não gostei tanto dele quanto esperava. O roteiro é simplório, desgastado e pouco criativo, apesar de ser baseado num poema. Por ser baseado num poema, entretanto, o filme possui belíssimos intertítulos. Logo no começo, por exemplo, quando marido, mulher e filha pequena contemplam o pôr-do-sol, aparece um letreiro com a frase “o crepúsculo da felicidade”, anunciando que, dali por diante, seria só ladeira abaixo. O que eu não esperava é que fosse tão irremediável. Não há redenção ao final, uau!

A trama, conforme já dito, é óbvia: um rico advogado bem-casado apaixona por uma vilanesca mulher que encontra num cruzeiro. Ela acabara de estimular e testemunhar o suicídio de seu amante anterior, ultrajado ao limite. Ele passa pelos transportadores do cadáver ainda na rampa do navio, mas desdenha deste augúrio, da mesma forma que ignorou o temor de sua esposa quando uma tempestade se anuncia pouco antes do advogado viajar para Londres. E, não importa o que aconteça daí por diante, ele não consegue se esquivar do impressionante poder de sedução da malévola personagem, interpretada pela mística estrela do cinema mudo Theda Bara. Mas, em minha apreciação, não é ela quem fisga por completo o espectador, mas sim a pequenina Runa Hodges, que protagoniza as melhores cenas do filme: quando brinca com os óculos e o jornal de seu pai no segmento “a inocência toma café da manhã”; quando reza para que seu pai volte para casa; quando pergunta a sua mãe se a cruz é um símbolo do amor (ao que a mãe responde: “às vezes, o amor é uma cruz”); e quando sua mãe a carrega para sensibilizar o pai bêbado e falido, que se emociona por alguns minutos, mas logo sucumbe diante do charme demoníaco de sua amante. Não é um bom filme, mas possui ótimos momentos. Estes contam!

Wesley PC> 

segunda-feira, 28 de maio de 2012

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES: INTRÓITO

Um dos meus colegas de pesquisa, um rapaz que está se graduando em Jornalismo este ano, escolheu como tema de monografia a criação do Facebook e a subsunção dos dados pessoais de seus usuários a uma lógica comercial atrelada ao capital especulativo. Na verdade, seu tema é muito mais complexo do que tentei reduzir nesta simples relação, mas é isto o que me interessa como ponto de partida para explicar o porquê da série de 11 postagens que descarregarei neste ‘blog’ com o título “Desafio Semanal dos 11 Filmes”: quem me tem adicionado como “amigo” nesta rede social pôde verificar uma drástica redução de minhas intervenções virtuais recentes, no sentido de que, não obstante meus comentários por lá estarem comumente atrelados a um contexto intelectual em permanente crise pessoal, a perenidade desta alegada crise estava desencadeando uma manutenção contínua de minhas carências sociais. Quanto mais eu publico algo no Facebook e sou “curtido”, mais eu desejo ficar por lá e obliterar alguns afazeres de minha dita “vida real”. Um destes efeitos colaterais é uma espécie de desorganização temporal na conciliação diária de minhas diversas atividades de consumo cultural. Por isso, precisei me servir da foto que emoldura esta postagem para propor a mim mesmo algo que batizei como “Desafio Semanal dos 11 Filmes”. O texto abaixo, que foi justamente o que publiquei no Facebook, explica muito bem os meus intentos com este Desafio:

“Da série 'quem (não) tem o que fazer, inventa!', uma tática defensiva: quanto mais eu leio este guia, mais eu reitero a minha necessidade de pesquisar filmes que eu não conhecia. Estou descobrindo tesouros subestimados, cânones hiperestimados e filmes que não estão nessa tal lista, mas que merecem o rótulo avassalador de obras-primas. Depois que eu descobri a quantidade acachapante de filmes inteiros disponibilizados no YouTube, gasto horas a fio baixando filmes que não tenho tempo de ver. Na última sexta-feira, tentei guardar um DVD num armário reservado apenas para os filmes em DVIX e não havia mais espaço. São seis compartimentos e já estão todos cheios. Se brincar, não vi nem 40% dos filmes que estão lá. Chegou a hora de tomar uma medida drástica, portanto! Assim sendo, decretei que só voltarei a pesquisar longas-metragens integrais no YouTube depois que tiver visto pelo menos 60% do meu acervo já adquirido. Fiz um acordo esquivo com meu subconsciente e, na manhã de hoje, baixei 11 filmes. Onze, em apenas uma manhã! Assim sendo, como punição, preciso assistir a estes filmes até a meia-noite de sexta-feira, devendo comentá-los individualmente, atribuir uma cotação estelar (sou da velha guarda, gente) e relacionar pelo menos três amigos a cada título. Quem sabe assim eu não controle esta minha sanha cinefílica que tende a se confundir com acumulação primitiva de capital? Afinal de contas, amor ao cinema é uma coisa e transformação deste amor em possessividade é algo muito diferente. E, de coração, eu vos digo: não faço tanta questão assim do segundo aspecto, humpf! (WPC>)” 

Reiterando o que disse anteriormente, estejam preparados para pelo menos onze postagens mais detalhadas sobre os filmes que estarei vendo até sexta-feira, aqui mesmo, neste ‘blog’. Que venha o tal Desafio!

Wesley PC>

COMO BEM DEMONSTRA O FOTOGRAMA, NORMA BENGELL INTERPRETA FELICIDADE...

Impossível sair emocional ou intelectual inane de “Mar de Rosas” (1977, de Ana Carolina). Histérico do início ao fim, este filme genial foi exibido no Canal Brasil no início da madrugada de hoje. Fiz questão de assisti-lo, já sabendo que se tratava da primeira parte de uma trilogia da diretora-autora sobre a condição feminina, continuada por “Das Tripas Coração” (1982, já visto) e “Sonho de Valsa” (1987, na espera). Difícil classificar ele como comédia ou como drama: é um filme em que se gargalha, mas, ao mesmo tempo, é trágico e sadista do início ao fim!

Ironicamente, qualquer fotograma do filme faz questão de negar uma associação simbólica imediata, mas Norma Bengell (maravilhosamente assemelhada a Jeanne Moreau, física e psicologicamente) interpreta uma esposa insatisfeita de nome Felicidade. Tenta conversar com o marido diversas vezes (vivido por Hugo Carvana), mas este não a deixa falar. Diz que sua vida "não pode ser resumida a um pingo [no I]" Sua filha Betinha (Cristina Pereira, em estado anárquico de graça) é completamente desmiolada e ignora as frustrações de sua mãe, que, num ápice de desespero, assassina o marido num motel. Foge com a filha, mas esta perfura o seu pescoço com um alfinete e taca fogo em suas pernas num posto de gasolina, obrigando-a a aceitar a carona suspeita do personagem de Otávio Augusto, que, mais tarde, ela tachará, aos berros, de “meganha” de seu marido. Quando é atropelada por um ônibus, Felicidade é acolhida pelo casal vivido por Myriam Muniz e Ary Fontoura, que beira a esquizofrenia em seu casamento falido e permeado por rimas, como “hoje eu saí do trabalho e minha mulher me mandou comprar alho, caralho!”. Gargalhei o filme quase inteiro, apesar de aquele aperto estranho no peito. É um filme triste, como bem demonstra Felicidade, quando agarra sua filha pelo braço, quando ela tencionava fugir, e grita: “vigilância é o preço da eterna liberdade”. E, ao final, era como se Betinha parecesse estar livre. Comemora a liberdade, mas...

 No caminho para a universidade, mais cedo, tropecei numa pedra e quase derrubei meus óculos no chão. Quebrei o meu chinelo e, quando fui ao banheiro lavar as mãos (por sorte, não havia nenhum sabonete com lâminas de barbear em seu interior, como no filme), enxergo, através do espelho, um garoto com farda de colégio guardar o pênis por sobre o seu calção. Ele ficou envergonhado, eu fiquei excitado, mas ambos precisávamos continuar nossos caminhos. Eu, arrastando a chinela, e ele... Ele, eu não sei! Não olhei para trás.

 Wesley PC>

domingo, 27 de maio de 2012

ASSIM DISSE O PRÓPRIO MICHAEL HANEKE: “ANTES EU ERA CONHECIDO COMO O CINEASTA DA VIOLÊNCIA, AGORA SEREI CONHECIDO COMO O CINEASTA DO AMOR”

Já houve ocasião – aqui mesmo, nesse ‘blog’ – em que mostrei uma inusitada foto sorridente do austero diretor austríaco Michael Haneke, um dos mais geniais artistas cinematográficos contemporâneos. Hoje, rendo-me a esta imagem muito repetida pelo jornalismo cultural de domingo por um excelente motivo: seu filme mais recente, o aguardadíssimo “Amour” (2012) recebeu a Palma de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Cannes 2012. Segundo a organização do evento, há uma determinação que indica que os vencedores dos principais prêmios (Palma de Ouro, Grande Prêmio do Júri e Melhor Diretor) não podem receber outras láureas, de modo que o filme contentou-se com esta importante concessão. O presidente do júri deste ano, o genial diretor Nanni Moretti sofreu acusações de que a premiação soou conservadora, em seu privilégio de filmes alegadamente realistas, mas, mesmo sem ter visto os competidores deste ano, acho este rótulo precipitado e muitíssimo equivocado. Mas deixa quieto: daqui a alguns meses, os filmes começarão a adentrar o mercado brasileiro e, em breve, terei o prazer de comentá-los, um a um.

Além do filme hanekeano, os demais filmes premiados foram: o mexicano “Post Tenebras Lux” (2012, de Carlos Reygadas), que parece ser um dos melhores e mais originais da Seleção Oficial deste ano, com Melhor Direção; “Reality” (2012, de Matteo Garrone) com o Grande Prêmio do Júri, escolha bastante criticada pela imprensa especializada; “The Angel’s Share” (2012, de Ken Loach), laureado com um prêmio especial do Júri; “Jagten” (2012, de Thomas Vinterberg), com o prêmio de Melhor Interpretação Masculina para Mads Mikkelsen; e o romeno “După Dealuri” (2012, de Cristian Mungiu), com os prêmios de Melhor Roteiro para o próprio diretor e Melhor Interpretação Feminina dividido entre as atrizes Cosmina Stratan e Cristina Flutur. Estou ansioso para conhecer tanto estes filmes premiados quanto os novos trabalhos de Abbas Kiarostami ("Like Someone in Love"), David Cronenberg ("Cosmopolis"), Walter Salles ("On the Road"), Leos Carax ("Holy Motors"), Jacques Audiard ("De Rouille et d'Os"), Wes Anderson ("Moonrise Kingdom"), Alain Resnais ("Vous N'Avez Encore Rien Vu") e Im Sang-Soo ("Do-Nui Mat"), para ficar apenas em alguns dos vinte e dois filmes apresentados e que competiram no Festival, mas, por ora, estou sorridente por causa do Michael Haneke: por mais que tachem este seu filme mais recente de “obra menor”, o elenco, o tema e o seu pulso forte directivo me fazem intuir que ele foi merecedor do prêmio principal, sim, senhor! Chega logo no Brasil, “Amour”!

 Wesley PC>

DA UNANIMIDADE PARA BAIXO, ZERO!

O que teria levado Conrado Sanchez, diretor de um dos filmes semipornográficos que mais me afetaram pessoalmente (vide panegíricos psicanalíticos aqui e aqui) a se render ao tenebroso testemunho cadente da autopromoção ridícula da execrável artista Carla Perez? Existem atos malévolos que nem mesmo a necessidade de comer justifica! “Cinderela Baiana” (1998), sintagma e paradigmaticamente, é a prova viva disto!

Acabei de assistir a este subproduto cinematográfico brasileiro e, simplesmente, não acredito no que vi. Aliás, acredito: não obstante o filme ter sido justificadamente execrado pelo populacho, incorri na mais crassa ingenuidade ao imaginar que algo de válido pudesse ser extraído deste filme... É uma desgraça, pura e simplesmente! O discurso final da protagonista, em que ela gagueja ao demonstrar-se contrária às campanhas demagógicas que fingem ajudar as crianças de beira de estrada, mas não se preocupam verdadeiramente com a necessidade de amor que elas sentem, é um testemunho da vilania altissonante desta obra: assistir àquelas crianças dançando “Melô do Tchan” na última cena do filme é um descalabro atroz! Periga até que eu tenha pesadelos por causa dela na noite de hoje...

 Não sei se cabe uma sinopse do filme aqui, mas lá vai: por mais que os créditos finais insistam em dizer que não há qualquer semelhança entre os personagens e pessoas reais, a estória da loirinha pobre, que vê sua mãe morrer na miséria, mas que, apesar disso, consegue chegar ao estrelato graças ao seu talento nato para a dança, é o mito biográfico que ronda a ex-dançarina do grupo É o Tchan!. Porém, ao contrário do filme anterior do Conrado Sanchez, não há nada que mereça o mínimo crédito dramático aqui, nem por vias acidentais, visto que as contradições do retrato da pobreza extremada da adolescente Carla são evidentes. Ou alguém é convencido que aquela rapariga loira, correndo as ruas lamacentas de Salvador com saia curta e pés descalços para mendigar acarajé, é merecedora de nossa comiseração espectatorial? Eu não fui. Senti pena do coitado do Lázaro Ramos, socado neste filme de décima quinta categoria. Horrível!

O mais esquisito no filme, porém, não é a previsibilidade aberrante da saga da protagonista, mas sim o contraponto empregatício com o pai dela, que ascende gradativamente na firma de contabilidade na qual trabalha, mas que não contribui em absolutamente nada para atenuar a penúria indumentária e alimentícia de sua filha. Subjacente à escalada para o sucesso da personagem Carla, está o pai e o avantesma da mãe, ambos insistindo ideologicamente que, “com o término dos estudos, há a esperança de uma vida melhor”. E Carla Perez, quando perguntada se participará de uma seleção para dançarina, retruca: “seleção? Mas eu nem sei jogar futebol!”. Melhor nem comentar, né? Nota zero para o filme!

Wesley PC>

FALTOU A MENÇÃO LITERAL À “ALMA AGRESTE”, MAS, MESMO ASSIM, É UM FILME MUITO MELHOR DO QUE EU ESPERAVA... OU POBRE MADALENA?

Depois de passar quase um mês sem falar comigo, por causa de um desentendimento bobo, uma amiga recém-divorciada me telefonou ontem à tarde, dizendo que queria ver um filme comigo. Ela disse que eu poderia escolher o filme que quisesse. Como eu lembrei que o casamento dela havia ruído por causa de ciúme doentio, de ambas as partes, “São Bernardo” (1972, de Leon Hirszman) me pareceu uma excelente opção. Não havia visto o filme ainda – e olha que o DVD estava em minha casa faz tempo – mas já li o livro do Graciliano Ramos e digo sem medo: é um dos meus favoritos, daqueles que devastam a alma!

Pois bem, magnificamente narrado pelo magistral Othon Bastos, fiquei aguardando o momento em que o ator recitaria o meu versículo preferido do livro, quando o protagonista menciona a sua alma agreste, mas este não veio: ao invés de fazer o intérprete de Paulo Honório pronunciá-lo, o genial diretor Leon Hirszman preferiu inocular o tal versículo em imagens e sons, incluindo nesta segunda categoria a experimental e excelente trilha sonora do Caetano Veloso. Mas o que impressiona mesmo no filme é o seu excelente roteiro, quase melhor que o livro em sua fidelidade rítmica. Numa cena genial, por exemplo, a personalidade mandatária do protagonista é descrita num excelente excerto: “quando eu cheguei aqui, escutava o tique-taque do relógio. Agora não ouço nada. Poderia levantar e dar corda no relógio, mas nem isso eu consigo fazer”... Glupt!

Eu e meus três companheiros de sessão fomos igualmente afligidos pelo filme. O seu trecho final, em que o ciúme e a malevolência do protagonista são justificados por sua adesão a um trabalho desumanizador não apenas é genial, como já era no livro original, como permite que seu diretor politicamente conscientizado contamine-nos com a crise existencial que aflige Paulo Honório em sua solidão. Ele adquire uma tardia consciência de classe, mas não dá mais tempo para corrigir a maioria dos seus erros, dos quais ele não se arrepende. “Se Madalena estivesse viva, eu poderia recomeçar... Mas faria tudo de novo, do mesmo jeito!”, confessa ele, num auge de sobriedade dolorosa que é tudo, menos auto-evidente: que o diga a cena em que ele propõe casamento à personagem de Isabel Ribeiro, como se fosse um mero acordo pecuniário, “em que esperar um ano é garantia de que o negócio não presta”! Impossível sair emocionalmente ileso daquela sessão... e sim, eu senti culpa: conheço uma Madalena na vida real. É a namorada atual do meu amigo recém-divorciado. Tremo só de pensar como ela ficaria caso, um dia, visse este filme! Tomara que eu tenha coragem de enfrentar esse estado de nervos antes que seja tarde demais...

 Wesley PC>