Assim que vi “Onde Andará Dulce Veiga?” (2007, de Guilherme
de Almeida Prado), fiquei tão entusiasmado com a sua beleza defeituosa que
escrevi um texto bastante entusiástico acerca do filme (vide aqui), deixando
claro que não sou muito fã do escritor do romance original, Caio Fernando Abreu.
Tiago Oliveira, um dos amigos mais graciosos que possuo, ao qual dediquei o que
senti durante o filme, apaixonou-se perdidamente pelo livro, assim que o tocou,
escrevendo, por sua vez, uma belíssima resenha do mesmo, publicada aqui. Graças
a ele, corri para ler o livro, para consumir as suas belezas, para me
identificar também... Eu me encantei com o filme. Tiago amou o livro e detestou a
versão cinematográfica. Ao ler o livro, o achei apenas mediano, não obstante
momentos grandiosos, que senti muito bem transmutados em película. Como
explicar tamanha divergência de apreciação? Sentindo a arte no coração, apenas
assim!
Na opinião de Tiago, o que mais lhe irritou no que tange à
adaptação do livro para o cinema foram as eliminações e/ou transmutações de
alguns personagens, criminosas segundo ele. De fato, a substituição do amante
comunista Saul pelo afetado Raudério, a supressão do amante homossexual Pedro e
a eliminação do sedutor cristão Filemon e do travesti adolescente Jacyr foram
evidentes, mas, de resto, não apenas considerei a adaptação muitíssimo fiel
(juro!) como superior em diversos aspectos. Coerente com o que o escritor e o diretor
conversam numa correspondência anexa à reedição atual do livro, aliás.
Eu já comentei que não sou muito fã do Caio Fernando Abreu?
Pois bem, incomodo-me com o que, para mim, parece uma forçação de barra
homossexual em suas obras e que, neste livro em particular, perde na comparação
com o filme, por causa da diferença de apreciação entre narrador literário e
cinematográfico: no primeiro caso, a identificação é obrigatória, conforme
assinalou Tiaguinho; no segundo, a identificação primária com a câmera permite-nos
outras escolhas. Assim sendo, as lamúrias entediadas do protagonista-narrador,
animicamente moribundo, foram involuntariamente compensadas pela atuação preguiçosa
de Eriberto Leão, que, por um lado, é incapaz de transmutar a dor de existir
que persegue o repórter de pelo menos quarenta anos que se desnuda diante de
nós o tempo inteiro, por outro, força-nos a avaliar como os defeitos
estruturais de uma obra de arte obrigam-nos a compensá-los estruturalmente com
a opção hermenêutica dos “atos falhos”, essenciais para a fruição da estética
minuciosamente elaborada dos filmes do genial Guilherme de Almeida Prado. A
troca da canção de Orlando Silva (”Nada Além”) pela emocionante “Nó” que é
entoada no filme também foi positiva em minha opinião [na verdade, ao rever o filme, descobri que o nome da canção é "Meditação", co-escrita por Antônio Carlos Jobim. "Nó" é o nome do disco de Márcia Felácio & as Vaginas Dentatas, que, no livro, se chama "Armagedon"] . Mas, se o desfecho do
filme soou incomodamente artificial em seu abraço heterossexual compensatório e
elíptico, a grandiloqüência onisciente do desfecho do livro é inequivocamente
superior: “se contar tudo, não se esqueça de dizer que eu sou feliz aqui. Longe
de tudo, perto do meu canto”, solicita a Dulce Veiga descrita no papel. Por
ela, sou obrigado a fazer côro com Tiago, senti muito mais vontade de cantar em
primeira pessoa que através do desfecho do filme. E Clarice Lispector dá o tom
derradeiro no romance: “Ah Força do que Existe, ajudai-me, vós que chamam de o
Deus”. E eu amo, amo, amo... Amo muitíssimo o meu amigo Tiago, inclusive – além
de um outro Thiago a quem aproveito para dedicar esta postagem apaixonada e
comparativa!
Wesley PC>