domingo, 10 de fevereiro de 2013

MUITO MAIS (OU MENOS) QUE UMA RESENHA ACRÓSTICA [nº 2]:

Lendo a inusual obra literária de João Gilberto Noll que inspirou o heteróclito filme “Harmada” (2003, de Maurice Capovilla), despejada em apenas um único parágrafo, deparei-me com uma passagem particularmente inspiradora na página 42 da edição que encomendei e recebi dos Correios, conforme prometido numa postagem anterior: “o uso que eu fazia da vida no asilo seria intragavelmente tedioso, não fosse esta espécie de espetáculo que eu apresentava regularmente aos meus colegas albergados. Ali, só outra coisa talvez me tomasse tão prazerosamente a atenção: a minha amizade por Lucas, o velho albergado que esmagara havia alguns anos o garoto que queria limpar o vidro do seu carro. Uma noite ele me disse: - Estou aqui , meu filho, conte comigo – definitivamente, ele passara a me tratar por meu filho. Até que um dia ele morreu”. E a estória segue, tão propositalmente atropela quanto chegou até aí, mas não pude deixar de converter esta passagem num SMS imediato e culposamente libidinoso...

 Uma ou outra passagem apenas difere-se da adaptação fílmica posterior [o livro também foi publicado em 2003!]: originalmente, a versão escrita possui muito mais sexo, menções a ereções, trechos passados num estádio de futebol e uma descrição genial de uma diarréia na página 49. Depois que conhece a filha crescida de uma atriz com quem teve um breve caso, o protagonista entra num banheiro e descreve o que aconteceu: “abaixei a calça, sentei na privada, e uma enxurrada de merda líquida começou a escorrer do meu cu, assombrando com certeza a boca do vaso com a sua aparência esquisitamente preta, como se aquilo que não parava de escorrer fosse uma mistura de fezes com sangue, sei lá. Quando voltei para debaixo da árvore de onde eu saíra antes de quase me esvair em merda, Cris ainda estava lá. Embora permanecendo estonteado, eu via novamente as coisas em seus contornos”. Ou seja, o súbito ato fecal assume aqui a função assimilativa diante do que o personagem sentia ao reencontrar alguém que não esperava rever...

 Comparando livro e filme, tendo a achar a adaptação de Maurice Capovilla melhor, no sentido de que ele acentuou a homenagem ao teatro que o autor enseja (o final do filme é muito melhor e mais solene, por exemplo), sem contar que, apesar de o protagonista do livro sofrer alterações etárias ao longo das páginas, a conversão mental do mesmo na figura de Paulo César Pereio (impossível não me render a isso depois de ter visto o filme) foi benfazeja: ator diegético e ator na vida real combinam-se muito bem!

 Além de adiantar a leitura deste livro pitoresco, neste domingo de Carnaval eu vi três filmes do mesmo diretor, o inspirado e criativo realizador prolífico francês François Ozon: “Sitcom – Nossa Linda Família” (1998), “Ricky” (2009) e “Potiche – Esposa Troféu” (2010). Comento sobre o segundo com mais propriedade em minha página de Fotolog, mas todos eles enterneceram-me deveras. Não por acaso sou fã de seu diretor: o modo como ele expõe os tabus sexuais da pequeno-burguesia e associa sua verve satírica e hiper-sexualizada a um contexto cinefílico que deve bastante à admiração pelos filmes hollywoodianos da década de 1950 (em especial, os melodramas ‘kitsch’ de Douglas Sirk) é absolutamente genial, transmutando-se sutilmente de um filme para o outro, seja na adoção salvaguardadora do incesto no primeiro, seja no elogio feminista do último.

 Sobre o cinema ozoniano, caberia destacar que, vendo os três filmes em seguida, pude perceber mais de um elemento autoral além dos que já foram mencionados: a repetição oportuna de frases entre um filme e outro (o ‘leitmotiv’ do progenitor que esquece as chaves e toca a campainha para entrar em casa, por exemplo) e o inteligente mote narrativo do “alguns meses antes” (ou “depois”), que reconfigura o impacto narrativo de algumas seqüências são méritos adicionais de seus filmes, emocionantes tanto na exploração da beleza física de Stéphane Rideau no primeiro filme quanto na valorização vocal de Catherine Deneuve, que cantarola que “o mundo é lindo, viver é bom” no desfecho do último. Como não amar François Ozon [para ficar em apenas um dos vários nomes (sub)citados nesta postagem], hein?

 Wesley PC>

Um comentário:

AmericoAmerico disse...

Ozon é gracinha mesmo, quero conhecer mais!