Particularmente, aprecio bastante filmes cujas cenas
cruciais se passam em supermercados. Um amigo que compartilha desta apreciação
costuma adicionar outro elemento apreciativo que, aos poucos, me contaminou positivamente:
filmes passados em veículos de transporte, principalmente ônibus. Quando
percebi que “De Passagem” (2003), premiado filme do cineasta paulista Ricardo
Elias partia deste pressuposto (a maior parte das situações-chave do filme são
passadas no interior de ônibus e trens), intuí que gostaria bastante do filme,
não obstante o chamariz do mesmo ter sido outro, também bastante efetivo: a
beleza física do jovem Sílvio Guindane, que, aqui, interpreta magistralmente um
estudante militar legalista. Gostei muito do filme!
Desde a primeira cena, em que um garoto entoa a célebre canção
do Cassiano “Primavera (Vai Chuva)” enquanto outros dois brincavam de futebol
num campinho improvisado, senti que o filme não seria um mero explorador
publicitário dos clichês contemporâneos do cinema de classe média situado na
favela. Ao contrário do que o público senso-comunal afirma, aliás, não acho
problemática ‘per si’ a pletora de filmes sobre favela, desde que estes não se utilizem
oportunistamente dos cenários e figuras populares para legitimar um discurso preconceituoso
sobre os habitantes destes locais. Exemplos conduzidos por Bruno Barreto, Jeferson De ou
Fernando Meirelles não faltam, bem como as exceções levadas a cabo por Lúcia
Murat, Jorge Durán e o próprio Ricardo Elias, que já havia me surpreendido com
o posterior “Os 12 Trabalhos” (2006). O viés enredístico primordial deste diretor
e roteirista é o aspecto humano por detrás dos estereótipos de bandidos negros
e, neste aspecto, “De Passagem” é um filme exemplar em sua complexidade
composicional: aos poucos, seus filmes nos conquistam, nos transportam para a
pele das vítimas de nossos próprios pré-julgamentos e, ao final, o que
predomina é a qualidade de um cinema que, se não se pode dizer que não julga os
seus personagens, não os condena. O magnífico desfecho em aberto do filme em
pauta que o diga!
Em “De Passagem”, o referido personagem de Sílvio Guindane volta
à cidade onde passara a sua infância para reconhecer o corpo de seu irmão mais
novo, envolvido com o tráfico de drogas, supostamente assassinado num município
distante. Dispondo de apenas poucos dias de licença, ele aceita a tarefa, visto
que sua mãe está emocionalmente combalida e seu pai, também policial militar,
se sente culpado por ter enviado o falecido para um instituto correcional
quando ele ainda era um menino. Um amigo íntimo do rapaz morto se oferece para
acompanhar o estudante militar até o Instituto Médico Legal. E, enquanto eles
vão se reconhecendo na viagem, lembranças infantis dos meninos Jefferson,
Washington e Kennedy (os três com nomes de ex-presidentes norte-americanos) despontam na tela...
Filmado predominantemente através de planos longuíssimos que exigiram bastante da firmeza de Sílvio Guindane no que tange à sua expressão sisuda e desconfiada,
“De Passagem” torna-nos cúmplice também do marginalizado (mas bem-intencionado)
vizinho dos dois irmãos, muito bem-interpretado por Fábio Nepô, premiado como
Melhor Ator no Festival de Gramado, onde a produção também recebeu os troféus de
Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro e Prêmio da Crítica, em minha
opinião, todos merecidos. De minha parte, receberia também os prêmios de Melhor
Trilha Sonora, visto que André Abujamra realça muito bem a atmosfera dos
diálogos e memórias sobre perda da inocência com música (incluindo a magistral
versão do Karnak para “Sósereiseuseforsó/ Nuvem Passageira”), e de Melhor Ator,
já que fiquei completamente apaixonado pelo Sílvio Guindane, em todos os
aspectos que esta palavra comportar perante a minha apreciação entusiástica do
filme. Se este rapaz já havia chamado bastante a atenção do público e crítica
de cinema através de seu desempenho memorável em “Como Nascem os Anjos” (1996,
de Murilo Salles), crescido, ele nos faz querer “traçá-lo”, como fazia o supostamente
falecido Washington: ah, se eu me deparasse com um ex-favelado desses num
trem...
Wesley PC>
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