sábado, 4 de maio de 2013

A REBELDIA (ENQUANTO EFEITO COLATERAL) E A INVENTIVIDADE DAQUILO QUE NÃO PODE SER DESCONHECIDO:

Quando eu me sentei na sala, nesta noite de sexta-feira, para assistir a algum filme, a produção exibida na TV Brasil às 22h30’era para mim completamente desconhecida. Minha primeira opção era um documentário sobre um artista plástico brasileiro que seria exibido noutro canal, mas o exótico título me chamou imediatamente a atenção: “Ajuricaba, o Rebelde da Amazônia” (1977, de Oswaldo Caldeira). Em meio à pletora de fumaça de ‘crack’ que inundava a minha residência e a comiseração relacionada ao que parece ser uma infecção de sarna entre alguns membros (humanos e animais) de minha família, aquele título despertava em mim alguma esperança: rebeldia era uma palavra bem-vinda no contexto em que me encontrava!

Nunca ouvira na vida sequer falar deste filme, de modo que, quando o mesmo começou, só identifiquei que se tratava de uma produção antiga por causa dos defeitos de exibição na película. Pesquisei algo sobre ele e descobri que fora realizado numa época produtiva de nosso cinema nacional, tendo recebido prêmios de Melhor Roteiro e Melhor Fotografia em festivais cinematográficos importantes, como o de Gramado e o de Brasília. Agora era definitivo: estava com muita vontade de ver o tal filme!

Não precisei de muito tempo para estar completamente inserido na trama, afinal contada de forma não-linear: se, no presente, um carro de polícia conduzia ruidosamente para o necrotério o corpo baleado de um bandido que assumia a alcunha indígena do título, na história definitiva do filme, transcorrida no século XVIII, um grupo de bandeirantes portugueses escravizavam alguns índios, dispostos a levarem vantagens comerciais sobre os holandeses então infiltrados no Brasil, que conseguiram firmar pactos forçosos com algumas tribos.

Por mais que os costumes fúteis e ambições intensas dos cortesãos lusitanos fossem mostrados, claramente se percebia que o filme era favorável ao protagonista Ajuricaba (silenciosamente encarnado por Rinaldo Genes, que está ótimo), internamente lancinado pelo que depois pude entender como uma traição: o índio discordara de uma opção política (por falta de palavra melhor) equivocada de seu pai e, após a morte do mesmo, ele se rebelou, disposto a tentar dirimir os danos ocasionados pela sanha devastadora dos portugueses nas matas manauaras. A narração discorria sobre lendas indígenas que versavam sobre quando “a noite se casou com o dia e, desta união, nasceram o Sol, a Lua e o filho Sempre”. Mesmo sem se pronunciar vocalmente, descobrimos, através de um ‘flashback’, o infortúnio matrimonial de Ajuricaba e conhecemos mais um motivo para a arregimentação ferrenha de seus desígnios de vingança. Os homens brancos temiam que o índio pudesse se transformar em qualquer animal, conforme apregoavam as lendas locais. A narrativa corrobora tais temores e lendas, de modos que assistimos a sumiços fantásticos de Ajuricaba e a aparições suas como onças ou cobras. Internamente, porém, sua alma permanecia devastada pela traição aos valores tribais. E ele pula na água. Por mais que os portugueses temam que ele vire peixe e que o protagonista branco do filme, um explorador orgulhoso que se gabava de nunca ter perdido nenhuma luta e de matar urubus, gritasse que ele seria esquecido, o filme toma partido do personagem-título. A realidade, porém, é mais cruel: por mais que o nome de Ajuricaba batizasse vielas, mercados e até mesmo a rede televisiva local, que transmite jocosamente a notícia de sua morte, os índios são coadjuvantes em sua própria localidade. Descendentes de Ajuricaba lamentam o vôo de uma periquita num estabelecimento de música brega. Por mais que o corpo de Ajuricaba, no necrotério, dê sinais de que voltará à vida, a imagem paralisada de um pedreiro indígena suado e exausto concede a tônica crítica do filme: na vida real, os índios perderam. A História oficial, conforme contada e repetida pelos brancos invasores, foi introjetada. Resta(-nos) rebelar-se!

Wesley PC> 

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