domingo, 8 de setembro de 2013

“A ALEGRIA DA MINHA ALMA MATA O MEU CORPO, MAS NÃO SE SATISFAZ” (ALGUMAS CONFISSÕES EXTRA-ACADÊMICAS E EXTRA-LITERÁRIAS)

Sempre tive muita vontade de consumir o famoso único romance lançado por Emily Brontë (1818-1848), um ano antes de morrer, aos trinta anos de idade, de tuberculose. Sempre cri que “O Morro dos Ventos Uivantes” seria uma impressionante história de amor, não obstante o filósofo francês Georges Bataille tê-lo incluído numa célebre compilação intitulada “A Literatura e o Mal”. Assisti às versões cinematográficas dirigidas por William Wyler, Luis Buñuel e Peter Kosminsky, sendo a primeira excelente e exuberante (o que justifica a inserção do meu rosto no cartaz do filme), a segunda exótica e provida de um certo charme latino e a terceira um tanto simplificadora, mas marcante por causa da impecável trilha sonora de Ryuichi Sakamoto que não me saiu da mente enquanto eu consumia o livro, ao longo das duas semanas que acompanham o tormento acadêmico descrito ao longo dos textos confessionais anteriores...

É neste ponto que eu me atrevo a incluir uma nova confissão: decidi-me a ler este romance durante esse estágio complicado de minha vida por saber que ele era um dos livros favoritos do querido pai de minha ex-orientadora. Mesmo que ela se recuse terminantemente a falar comigo por conta de um gesto universitariamente imaturo entendido como acinte traiçoeiro, fiz questão de enviar-lhe, via SMS, a primeira citação de destaque do primeiro capítulo: uma descrição do comportamento rabugento do protagonista Heatcliff pelo semi-narrador Lockwood, que alegava que a reserva solitária do mesmo tinha origem em “uma aversão a demonstrações efusivas de sentimento – a manifestações de gentileza recíproca”. Segundo o referido narrador, Heathcliff “ama e odeia, sempre às escondidas, e considera uma espécie de impertinência ser amado ou odiado de volta” (página 18 da edição que possuo). Minha ex-orientadora não respondeu à mensagem. Não esperei nem precisei disso...

Avancei a leitura do livro com avidez: percebi que ele era dividido em dois volumes e, por conta do intenso mal-estar que a trama me causou, conferi uma pausa de uma semana a mim mesmo entre um e outro volume – quatorze capítulos no primeiro caso; vinte no segundo, num total de trinta e quatro, distribuídos ao longo de trezentas e setenta e três páginas (incluindo-se as dez concernentes ao preâmbulo da edição da edição da L&PM Pocket publicada em 2011). Insisto: o livro me fez sentir muito mal (e mau também)!

Tanto por causa das similaridades entre as injustiças que envolviam os personagens e as conseqüências do ato imaturo anteriormente mencionado quanto por causa do descompasso entre a fama langorosa do livro e as suas qualidades intrínsecas e formalmente surpreendentes, o livro me fez mal. Troquei diversas mensagens com amigos durante a leitura, sendo que um deles – alguém rústico por quem sou eternamente apaixonado – apressou-se em defini-lo como “um livreco”. O motivo: o romance o fazia lembrar-se de uma namorada que o abandonou por motivos similares àqueles que se interpuseram entre os amantes da trama, os preconceitos sociais. Ele, inclusive, redigiu uma crítica estouvada do romance aqui, levando em consideração muito mais o bafafá posterior ao consumo ‘pop’ do romance que as inovações narratológicas que eu detectei no mesmo. Tratando de respeitar as opiniões divergentes e cuidando para não deixar vazar detalhes tramáticos que atrapalhem o (des)prazer de quem ainda não leu o romance, seguem algumas considerações analíticas, de minha parte:

Em relação à sinopse do livro, é dificultoso encontrar um ponto de partida, mas tentemos: tudo começa quando o fatigado Sr. Earnshaw, um viúvo que mora apenas com seus dois filhos, Hindley e Catherine, além dos vários criados, num local ermo e afligido por ventos lúgubres, traz para casa uma criança abandonada após uma de suas viagens. Catherine se encanta pelo garoto, Hindley torna-se extremamente enciumado. Todos são caprichosos e descritos impiedosamente pela autora, que não poupa os deméritos de nenhum dos personagens – absolutamente nenhum! Não é surpresa saber que Catherine e o garotinho, batizado apenas de Heatcliff, se apaixonarão. Mas serão impedidos de concretizar o ato. Mais tarde, ela se casa com um vizinho, Edgar Linton, e Hindley enviúva após o matrimônio, tornando-se um alcoólatra e negligenciando seu filho Hareton, que é cuidado (e tornado bruto) por um irascível e abandonado Heathcliff, eternamente apaixonado por Catherine, nas raias da loucura vingativa. O tempo passa e Heatcliff casa-se com a irmã de Edgar, Isabella, apenas para torná-la infeliz. Ela foge dele, morre, mas lhe concede um filho, Linton, o qual ele só conhecerá após a morte dela. Não apenas ele, como também o tio Edgar, que jurou nunca mais falar com Isabella, e a filha dele, Cathy (apelido de Catherine), que nasceu no mesmo dia em que sua mãe, Catherine, morreu, tornando os personagens do livro ainda mais amargos. Do meio para o final, os personagens tentarão sobreviver às desavenças, à ira e aos sentimentos vis que os guiam...

O detalhe que muda (quase) tudo: a trama não é narrada da forma como eu a descrevi anteriormente. Quem primeiro surge no romance é o inquilino do Sr. Heathcliff na velhice, Lockwood, que, escandalizado com o clima de discórdia que encontra na casa de seu senhorio, pede à sua empregada, Nelly, que lhe conte pormenorizadamente a história daqueles indivíduos. Estávamos em 1801 quando o romance se inicia, regredimos vinte e cinco anos, conhecemos tudo a partir do relato da onipresente Nelly, que descreve longuíssimos diálogos e missivas demonstrando uma memória irreprimível, e tudo termina em 1802, quando Lockwood volta ao local descrito no título do romance. ‘Flashbacks’ no interior de reminiscências, em meio a memórias mútuas e relatos epistolares, se misturam, configurando um estilo narrativo que, apesar de seu sobejo emocional descritivo (quase irritante, conforme destacou o mal-humorado resenhista Reinaldo), não merece ser descrito como menos que genial. Irritante, indignante, porém genial!

O porquê de tudo ser irritante: é visível que a autora compactua com os preconceitos que ceifam a tranqüilidade dos personagens. Em mais de um momento, ela utiliza a personagem da narradora intradiegética Nelly para tentar nos tornar cúmplice dos julgamentos injustos que se abatem sobre os membros das famílias Earnshaw, Linton e Heathcliff. Para a autora (através do que narra a serviçal), os ciganos são de má índole, as raparigas formosas têm razão de serem tão ríspidas e agressivas, e a ignorância e o analfabetismo são determinismos irrevogáveis. E, obviamente, tudo isso me fazia experimentar a raiva que abunda no romance. Não queria nem precisava sentir raiva – digo mais: temia senti-la, dada a minha fragilidade emocional hodierna – mas, nos derradeiros capítulos, o tom do romance muda, a ternura e o perdão parecem que ainda serão aceitos em meio àquele clima tétrico de tragédia coletiva e anunciada, que chega a beirar o sobrenatural de tão intensa. Mais do que isso, eu não conto. Leiam o livro: exaspera, mas, ao final, é maravilhoso e inteligentíssimo. Muito melhor do que dizem que ele é, aliás – por motivos completamente diversos daqueles que o tornaram famoso, inclusive. Frase final: “perguntei-me como alguém poderia conceber um sono intranqüilo para os que dormem no silêncio daquela terra”. E, algum dia, talvez a minha ex-orientadora volte a trocar alguma palavra comigo: quem sabe até ela me perdoa?


Wesley PC> 

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