Desde que eu entendi o contexto em que o cineasta Carlos Diegues
cunhou e utilizou defensivamente a expressão “Patrulhas Ideológicas” – discutida
em livro homônimo organizado por Carlos Alberto M. Pereira e Heloísa Buarque de
Hollanda, em que estão reunidas entrevistas com diversas personalidades
culturais brasileiras debatendo sobre o tema – passei a ficar bastante
interessado em seus filmes antigos. Aproveitei uma deixa de pesquisa na tarde
de quinta-feira e assisti a duas obras deste diretor: o maravilhoso “Chuvas de
Verão” (1977) e o interessante “Dias Melhores Virão” (1989).
Em ambos os filmes, encontramos Jofre Soares e Paulo César
Pereio no elenco, mas ocupando funções bastante diferentes: no primeiro filme,
Jofre Soares é o protagonista. Interpreta um recém-aposentado que se apaixonada
por uma vizinha da mesma faixa etária, mas que enfrenta problemas relacionados
a crimes, envolvendo tanto o namorado de sua empregada doméstica quanto um
palhaço envelhecido que mora ao lado e seqüestra e assassina uma garotinha; no
segundo, o ator tem uma função terciária, mas divertidíssima e assaz crítica,
já que ele vivifica um general insatisfeito com a abertura política do Brasil,
divertindo-se enquanto aplica choques elétricos num gato. Ótimo ator este:
muito digno!
Se, no primeiro filme, Paulo César Pereio utiliza toda a sua
irreverência e deboche para dotar de cinismo o vizinho inconveniente do
protagonista, que alega que “santo é aquele que morre na barriga da mãe”, no
segundo, este ator interpreta um dos membros da equipe de dublagem em que
conhecemos a personagem de Marília Pêra, uma sonhadora traumatizada com o
acidente que matou um namorado motociclista da infância e apaixonada por um
homem casado que fode com ela todas as quintas-feiras. Intérprete deste último:
José Wilker, sem dúvida o aspecto menos interessante do filme.
Tanto um quanto o outro filme me emocionaram, mas o primeiro
é muitíssimo melhor e mais sociologicamente honesto que o segundo: em “Chuvas de
Verão”, ouvi que “uma das melhores maneiras de acabar com a solidão é se
interessando pelas pessoas”; em “Dias Melhores Virão”, foi dito que “no
capitalismo, não basta se dar bem: o concorrente tem que se ferrar!”. Cacá Diegues
não era um mau cineasta: ele sabia o que e a quem estava visando. O decréscimo
qualitativo do segundo filme, relacionado à legitimação enredística dos anseios
por grandeza hollywoodiana da protagonista, deixa claro o intento vendável do produto
fílmico que ele lançou, infelizmente exibido na televisão antes de chegar aos
cinemas, o que prejudicou o seu sucesso comercial. Particularmente, ele
merecia: o filme é muito bom, a trilha sonora é bem-selecionada, Rita Lee está
ótima como a personagem de entalado norte-americano que a protagonista dubla,
Zezé Motta, Paulo José, Benjamin Cattan, Antônio Pedro, Aurora Miranda e os demais integrantes
do elenco capricham em suas coadjuvações, e a contextualização do Brasil em
final de década de 1980 é cuidadosa. Durante os créditos finais, exultei ao
perceber o clima descontraído das filmagens, sendo que o próprio diretor Cacá Diegues
arrumou uma oportunidade sagaz de aparecer numa entrevista televisiva, tachando
de megalomaníacos os projetos cinematográficos nacionais do passado (o Cinema
Novo, talvez?)...
Porém, nada do que eu elogiei neste filme mais recente se
compara à grandiosidade sensível do filme anterior, valioso tanto enquanto análise
do desabrochar do amor entre pessoas idosas (em que a personagem de Míriam Pires insiste em reclamar de que, naquela idade, não tem mais o direito de se
apaixonar... Ou tem?) quanto enquanto amostragem dos tipos suburbanos do
período, entre eles, o palhaço que ainda tenta fazer com que as crianças
experimentem a magia do circo, o ex-jogador de futebol que virou empregado de
fábrica e compõe sambas-enredos nas horas vagas, e o marido aburguesado e ciumento
que disfarça a sua homossexualidade sob a pecha de adúltero. E ainda estou na
página 35 do livro que se aproveita discursivamente da expressão cunhada pelo
diretor (risos). Nas palavras de Cacá Diegues, por conta do lançamento justamente
deste filme mencionado há pouco, “na medida em que o país se democratiza (pelo
menos, aparentemente) e algumas camadas da população podem se manifestar mais
livremente, eu vejo uma tendência no sentido de uma supervalorização das formas
aparentes, superficiais, da manifestação política através da obra de arte” (página 17). Em
ambos os filmes aqui comentados, o diretor atingiu vigorosamente os seus
propósitos!
Ah, mais uma detalhe: quem me conhece, sabe o quanto menções
ou situações de masturbação me cativam – e elas constam de ambos os filmes. Em “Dias
Melhores Virão”, há o momento em que o fantasma do personagem de José Wilker
diz à protagonista que só vai ao cinema para bater punheta, “mesmo quando o filme
não é de sacanagem!”, num estratagema de autocitação aos problemas
contemporâneos do cinema brasileiro cara aos diretores que começaram como
cinemanovistas e, em seguida, precisaram prestar contas com as tais “Patrulhas
Ideológicas” anteriormente mencionadas (risos). Em “Chuvas de Verão”, por sua
vez, há uma cena belíssima, em que o solitário velhinho vivido por Jofre Soares,
decidido a nunca mais tirar o pijama depois que se aposentou, observa a sua
empregada (Cristina Aché, linda e eloqüente) transar com o namorado bandido e
sensual. A câmera focaliza o baixo ventre do protagonista, que passa a se
alterar. Ele enfia a mão em sua calça, cerra os olhos num gesto de prazer
inicial, mas interrompe a bronha e deita-se na cama, chorando. Eu entendi o que
houve e aplaudi de pé, emocionado. Bravo, Cacá Diegues, bravo!
Wesley PC>
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