sábado, 4 de janeiro de 2014

PARA ALÉM DO CRIME E/OU DO CASTIGO...


"Havia um tumor em seu interior: este não poderia ser extirpado cirurgicamente, pois ele detestava hospitais, detetava médicos, detestava (palavra que, por si só, já indica onde estava o tumor)... Havia uma faca na cozinha, e o telefone tocava... Mas ele só pensava no tumor, e em detestar, e em detestar o tumor, e em detestar hospitais, detestar médicos... Choveu: quatro periquitos grasnavam (ou seja lá qual for a onomatopéia dos periquitos!), três cachorros latiam, duas pessoas enciumadas brigavam no quarto, e ele, sozinho, se masturbava... Por causa do tumor, junto ao sêmen, saiu catarro, pus, sangue coagulado e uma maçã com formato de beijo. 'É mais bonito assim, né? Com um lado grosso e outro fino. É mais estilo!'. Nas flores do lençol sobre a cama, manchas de sêmen, mijo, catarro envelhecido, sujeira e luz. Amor com espinhos de mandacaru (ou, quem sabe, bichos-de-pé). Plural!".



O texto acima é um reflexo de como eu me sentia na manhã de hoje: finalmente havia chegado à parte final do romance que Fiódor Dostoiévski lançou em 1866, “Crime e Castigo”. Falta apenas um epílogo de quinze páginas para que eu termine a leitura, mas sou obrigado a dar a cara a tapa: se, até o terceiro capítulo, eu me incomodava pela ausência de identificação, da metade em diante eu quase acrescento o sobrenome Raskólnikov ao meu próprio. É incrível o quanto enfrentei situações muito similares ao que o protagonista do romance, depois que ele assassina uma velha avarenta que ele considera um mero “piolho”...

Apesar de ter ciência de que cometera um crime, Raskólnikov não se angustia moralmente, mas legislativamente. Ex-estudante de Direito, ele precisou abandonar a faculdade por conta de dificuldades financeiras, que supostamente motivaram o assassinato que praticara. Ao longo do romance, entretanto, dramas de outras pessoas se somam ao seu, que pode ser transladado numa simples sentença: o medo de ser preso!

Sua irmã, Avdótia Românovna (eventualmente chamada de Dúnia) é prometida em casamento a um homem que logo se revela sovina; um outro, Svidrigáilov, que fora acusado de assediá-la sexualmente quando ela trabalhava como preceptora na casa de sua esposa recém-falecida, a persegue quando ela viaja para São Petersburgo com a mãe, Pulkhiéria Alieksándrovna. Em meio a tudo isso, Raskólnikov se envolve com uma garota (Sófia Ivanóvna, apelidada Sônia) que é obrigada a prostituir-se por conta da miséria do pai, que é atropelado e morto num acidente cotidiano, deixando viúva a tuberculosa Ekatierina Ivánovna e seus vários filhos pequenos. Funerais não faltam no livro, estórias paralelas idem. Mas é o drama de Raskólnikov que predomina na narrativa, em suas quase seiscentas páginas.

No capítulo anterior ao “Epílogo”, Raskólnikov finalmente assume o seu crime numa delegacia de polícia. Não sei ainda o que lhe acontecerá, mas, se eu estava incomodado com as exacerbações trágico-classistas da primeira metade do romance, agora estou afoito de tanto que ele está me afetando. E falta pouco para que a trama tenha fim...

“Se o indivíduo é culpado, pode-se, sem dúvida alguma, esperar dele algo de real, e até contar com o resultado mais imprevisto”, diz um agente da lei na página 486 da edição que tenho em mãos [Capítulo II da Quinta Parte]. Tenho mais com o que me preocupar?

Wesley PC>
 

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