sexta-feira, 4 de abril de 2014

“E EU, PELA PRIMEIRA VEZ COM VOCÊ, USEI A PALAVRA AMOR. DISSE PARA VOCÊ, MAIS OU MENOS, QUE A SUA TRISTEZA ERA O MEU AMOR. QUE VOCÊ TINHA DESPERTADO UMA AMBIÇÃO SENTIMENTAL EM MIM” (p.173)


E, assim, eu mergulho implacavelmente nas duzentas e sessenta e sete páginas de “A Caixa-Preta” (1987), do israelense Amós Oz, que me foi emprestado por um amigo na tarde de quarta-feira, após eu ter-lhe enviado uma definição de Hamid Naficy (citando Linda Kaufman) sobre as associações inatas entre a epistolaridade e o desejo.

O romance em pauta é epistolar: todo ele é construído a partir da correspondência entre os personagens, ao longo de meses (quiçá anos, visto que ainda estou no meio da estória). Os protagonistas são o acadêmico Alexander Guideon e a ninfômana Ilana. Eles se divorciaram, depois que ele descobriu o seu compêndio açambarcante de traições. Ela fazia sexo com outros porque ansiava pela atenção dele. Um filho nasceu, Boaz, que, aos 16 anos, lindo como um arcanjo bélico, é como se fosse um gigante, beirando os dois metros de altura. Mal sabe escrever e é deveras agressivo, porém terno com as prostitutas, conforme antevemos num de seus dez mandamentos pessoais. Seu padrasto Michel Sommo, fanático religioso, faz o que pode para mantê-lo longe das prisões, mas ele quer viajar, “ganhar o seu próprio sustento com o suor de seu rosto”, como está nas Escrituras Sagradas. O advogado germânico-israelita Manfred Zakheim interpõe-se na trama, como representante legal (e estranhamente submisso) do professor Guideon. Dinheiro é o elemento que dá a tônica afetiva e relacional entre diversos estes personagens, mas a amargura, o remorso, o amor incontido e o desejo sexual também os preenchem...

Dizia a citação naficiana enviada vis SMS: "Exílio e epistolaridade são constitutivamente ligados porque ambos são motivados pela distância, separação, ausência, perda e anseio de suplantar as interrupções múltiplas. Qualquer que seja a forma da epístola (uma carta, um bilhete escrito num guardanapo, uma conversa ao telefone, uma gravação ou mensagem eletrônica), ela se torna, nas palavras de Linda Kaufman, 'um deslocamento metafórico e metonímico do desejo' - o desejo de estar com um outro e se reimaginar noutro lugar ou noutro tempo".


 O amigo que me emprestou o romance disse-me que o autor é um de seus favoritos porque, quando a sua irmã tentou se suicidar, atirando contra a própria cabeça, tinha outro romance de Amós Oz nas mãos. Isso teria prejudicado a sua estrutura familiar – inclusive financeira – peremptoriamente. Felizmente, a moça não morreu: procriou, estuda, talvez seja eventualmente feliz. O amigo em pauta, por sua vez, é constantemente atormentado por acusações de arrogância. Não acho que seja o caso. Mas estou gostando muito do romance!

Não há como não mencionar a sagacidade do título, que remete a um aparato aeronáutico que permite que acidentes sejam reconstituídos, a fim de se descubram as suas causas. É uma trama emocionante, mas o que mais me espanta no romance é a sexualidade incandescente do jovem Boaz, expressa através de suas cartas repletas de erros ortográficos. E os clamores por (in)tolerância acerca dos diversos povos que vivem em Israel, interesse subjacente – porém onipresente – da trama. Brilhante descoberta: mergulharei o quanto antes na segunda metade!

Wesley PC>

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